A arma mais eficaz contra o medo é um horário de trabalho
que às quatro da manhã de um Sábado nos deixa de gatas à procura da saída e do
carro que nos aconselham a deixar estacionado na garagem e nunca nas
imediações, porque há imenso assaltos.
Saio a arrastar os pés, desgrenhada, pindérica, esgotada e a
sentir os joelhos na nuca. Procuro não adormecer no elevador, fazendo de conta
que ando à procura das chaves na carteira que parece pesar duas toneladas e
evito tombar para o lado encostando-me à parede enquanto o maldito desce sem
parar.
Saio muito devagarinho para não me desfazer e de chave em
alerta máximo ouço o carro a dar sinal de si num PIIIIIIII que me
arrasaria os nervos se ainda os sentisse.
Caminho já curva, com as mãos a arrastar no chão e de língua
de fora.
Ao longe, três carros depois do meu, atrás de um pilar,
enfiado na penumbra, adivinho um vulto, parado, quieto, um bocadinho sinistro.
Consigo perceber que é um homem, de mãos nos bolsos e careca. Nunca hei-de perceber
como soube que o mafarrico era careca.
Tão segura a garagem!
Vou no mínimo, ser assaltada. No máximo apunhalada. Comigo
não há estádios intermédios. Imagino o perito forense debruçado sobre o meu
cadáver - coberto por um lençol imaculado, caracóis escapando rubros,
misturados com o sangue que brilha à luz dos focos da ciência e sapato Manolo
Blahnik abandonado perto do meu corpo - banhado em lágrimas:
- Quem foi o monstro capaz de fazer isto a um anjo tão lindo
como este?!
Naquele instante o que interessou foi enfrentar o demo que
não sabia que o anjo lindo prestes a assassinar tinha saído de um inferno
monumental onde se manteve de pé horas a fio, enfrentado multidões ensandecidas
de criaturas traumatizadas; tratando da saúde a umas outras tantas; corrido
corredores sem fim à procura de apoio de urgência; esbardalhando raspanetes a torto e a direito por dar
conta que lhe faltava material - quase esmagando o que estava apenso a um
belíssimo rapagão que inocente se meteu à sua frente -; enfrentando dois
polícias que lhe vieram trazer um tarado teimando em deixá-lo ao seu cuidado -
Nem pensar, meus caros. Se tiver de ficar com alguém, prefiro um de vós.
Saudável, musculado, sóbrio, com um hálito dentro dos limites estipulados pela
Lei e com o apito em condições; espetando bisturis em tudo o que se movia sem
autorização e apanhando dois esgrouviados nus a correr pelas salas de espera do
piso onde tudo acontecia sem que ninguém - sublinha-se ninguém - se apercebesse
que o que traziam ao léu, a dar-a-dar, não merecerá nunca uma capa da
Cristina.
Posto isto, será bom de ver o que esperava o careca maldoso,
atrás do pilar com ar de assassino de ruivas cansadas.
Verifiquei a biqueira de um dos sapatos e o salto do outro.
Tudo em ordem. Não me tinha esquecido de os calçar. Lamentei a sorte do meu
substituto que, mal chegado, teria de acudir aos tintins de um rufia saído de
um filme negro sem categoria, e já pronta e desperta, sem réstia de medo ou
cansaço, desafiei a morte certa como uma ruiva o deve fazer: em frente,
que já se faz tarde e isto não chega aos netos.
A sorte do imbecil careca foi a bocarra do elevador se ter
abreto para expelir uma data de dois matulões - valiam por muitos - a quem
tinha dado uma hora antes um raspanete digno de um império. Não me reconheceram
por estar à paisana – dou graças, porque de contrário suspeito que os meus
sapatos não davam conta de três pares de tintins -, mas afastaram por sugestão minha o careca mal-encarado.
Se me voltam a aconselhar o estacionamento na garagem,
transformo-me em sniper.
Gaffe - 2017