26.5.24

A Gaffe a balançar


As minhas mãos passam despercebidas, cambaleando sonâmbulas no som que os pássaros soltam de ramo em ramo.
As minhas mãos são ruivas e nem a ferruginosa cor das minhas mãos permite a inacabada antítese da paisagem do meu corpo.
As minhas mãos ruivas não são mais do que o rasto que fica, como a ferida de um fruto que se acaba de morder. Um fruto vermelho, uma romã, uma cereja, ou a mordida feroz no coração da tarde ou no meu, que entardece no som despercebido das minhas mãos sonâmbulas.
As minhas mãos ruivas são desiguais a mão que digo amar e é nesse dizer do amor que sinto não sentindo que as minhas mãos balançam na mão que digo amar, porque em mim o amor é sempre o oscilar das cores com que as aves fazem ninho.

Tenho as mãos feias.

Sempre tive consciência do tamanho das minhas mãos. Dos ossos demasiado longos, finos, dos dedos com nós salientes, da fealdade dos seus movimentos deselegantes, da impossibilidade de as adornar.

Escondia as minhas mãos, era criança. Matava-as nos bolsos dos bibes e das batas e dos casacos ou mantinha-as muito fechadas de forma a que aqueles bichos não ocupassem o espaço dos outros.

As minhas mãos envergonhavam-me.
Comparava-as com a lisura, com a harmonia, com os diáfanos voos e com a perfeita forma das mãos da minha irmã e sentia-me bruta e torpe e grosseira.

Permitiram, os dois bichos, entregar alternativas aos meninos da escolinha. Era o fósforo ou a mãos-de-tesoura. Nunca entendi qual o que cortava primeiro, nunca soube se era o aço a cortar o fogo ou se era o contrário. Nunca gostei do jogo.

O meu avô gostava das minhas mãos.

- São como as grades do portão. Fecham e abrem o que quiseres dentro de ti.

As minhas mãos tornaram-se ágeis de tão feias. Aprenderam a escapar, a desaparecer, a espreitar, a surripiar silêncios e a mover com uma perícia e rapidez inusitada minúsculos objectos, detalhes, pormenores e nadas que, em mãos diferentes e perfeitas, se partiam no tempo da tarefa.

Guardava dentro delas os meus mundos.
Assim aconteceu.

Tenho as mãos feias, mas é Primavera.

Os dedos das árvores são medonhos, mas são meus.