A biblioteca do meu avô - agora minha por desejo dele -, é um lugar aprazível e recatado, com cheiro a couro antigo e um breve timbre de cânfora que não desagrada, porque nos faz respirar como se estivéssemos a beber água com limão, mas sem açúcar. Sempre na penumbra - as avalanches de luz são impedidas pelos cortinados pesados, polícias respeitáveis, temidos e imponentes -, a atmosfera permite, nas tardes de Primavera que entra coada pela água do lago do lado de fora, vislumbrar as partículas de pó e de pólen que flutuam douradas nas autorizadas lâminas iluminadas de silêncio.
Ao lado da caixa de madeira de cedro onde o meu avô guardava, catalogadas com inimaginável mestria, os milhares de fichas de leitura que permitem ainda encontrar a obra que quisermos em poucos minutos e que humilham a pedante informatização mais recente, existe uma escada que pode ser presa às estantes intermédias possibilitando alcançar as obras colocadas nas prateleiras mais altas, junto ao tecto. Lembro-me que o meu avô, suspenso num degrau dessas escadas, de braços estendidos, parecia um dos homens que vindimavam o telhado do alpendre construído por cachos de uvas roxos e gorduchos. Disse-lho um dia e ele confirmou. Era também um vindimador.
Num tempo já ido, mesmo aqui tão perto, nos inícios de Maio, o meu avô revia e actualizava as fichas do seu catálogo, acrescentando as obras que entretanto tinham sido adquiridas.
É a minha vez de abrir a caixa de cedro.
Em menina, não mais de quatro anos, acompanhava-o sem perceber que me iniciava no modo de operar que seria meu, por desejo dele, e nessa altura, contrariando todas as recomendações, o meu avô deixava que brincasse com as obras mais próximas do chão, que era o meu tamanho.
Da estante baixinha que guarda a Questão Coimbrã, retirei ontem O Crime do Padre Amaro que tinha escolhido com o tino da infância. É um volume supostamente autografado por Eça, com dedicatória à minha bisavó materna que acolheu o seu spleen francês com o estoicismo e humor das parisienses da época.
Ao folheá-lo revi as minhas ilustrações. Rabiscos vermelhos, azuis e amarelos, com apontamentos verdes que se passeavam pelas páginas ao sabor da pena e do lamento da minha mãe e do traço rombo dos lápis de cor de uma menina de quatro anos. Ninguém retirou e protegeu das mãos da pequena criminosa o volume precioso que perdeu a áurea divinal que alardeava e que acabou por ver reconhecido o seu valor real, que não o inflacionado por uma assinatura comprovadamente falsa.
Folhear o volume que encontrei tem a consistência do milagre.
Percebo claramente, para além de ter aprendido a povoar a caixa de cedro do meu avô, fui compreendendo que amar um livro é torna-lo tão nosso como se abríssemos as asas quando nos perguntam se sabemos voar.
Não vou ter filhos. Soube muito cedo que não sou uma galinha de óvulos de oiro. Se pudesse ter um filho, sei que o traria, nos inícios de Maio, à minha biblioteca para abrir a caixa de cedro e aprender comigo, sem saber, a catalogar os livros que chegavam e a ilustrar aqueles que próximos do chão lhe iam dando asas.