11.5.24

A Gaffe de Miguel Ângelo

Norro Bey
Foi o desprendimento de David, de Miguel Ângelo, que me avassalou.
Foi a tranquilidade subtil do segurar lasso da funda desarmada, a ausência de fúria no movimento sem sonoridade, os flancos num desequilíbrio de sensualidade quase provocadora, o peso pousado numa perna que obriga o corpo - peso pluma - inteiro a desenhar um arco delicado de serenidade inesperada e a quietude pacífica, imprevista, dos músculos perfeitos, que me fizeram crer que o guerreiro se centrava apenas no olhar.

Em David, apenas o olhar contém violência. Tudo o resto é a escultura de uma batalha que findou, a impassibilidade do vencedor, a certeza da inutilidade do combate.

Talvez David retenha por isso uma estranha espécie de feminilidade discreta, quase imperceptível, que atrai porque o satura de impenetrabilidade, como se fosse um segredo, ou um mistério.
Creio que é num labirinto de hesitações, de dúvidas e de incertezas que acabamos por desejar desesperadamente tombar. Necessitamos dos vórtices, dos vendavais, da voragem das angústias e dos medos, do talento para derrubar espectros e erguer quimeras, da velocidade doida com que cobiçamos os mais ínfimos mecanismos, as minúsculas roldanas, os mais escusados apetrechos que permitem a trepidação que nos entrega a aparência de estarmos realmente vivos.

Não sabemos parar. Não conseguimos parar.

Talvez por isso David nos deslumbre. Não espera nada.