10.5.24

A Gaffe muito loira

O estereótipo da loira burra, que terá o seu paradigma nas fantásticas encarnações cinematográficas de Marilyn Monroe, é a origem de imensas anedotas, na esmagadora maioria banais e sem grandes ambições.

É lamentável.

A loira burra, quando não roça o boçal ou o alarve, encaixada em qualquer casa que se deveria manter definitivamente entaipada e em segredo, é uma das mais encantadoras criaturas de que há memória.
A indiferença abissal com que olha o universo e a sua ingenuidade, terna e desprotegida, aliada à suposta ignorância que faz recair sobre aquilo que os outros, por desígnios divinos, consideram essencial conhecer ou saber, torna-a deliciosa e capaz de enfrentar os olhares engavetados e espartilhados, que a amesquinham e ridicularizam, com a superioridade indiferente e a indiferença superior que são atributos apenas dos sábios e dos loucos.

Subestima-se a loira burra.

Não há nada mais delicioso do que a ver, por exemplo, chegar esbaforida e revolta ao hall do hotel, no Nilo, gritando que está a ser perseguida por um Lacoste ou ouvi-la declarar surpreendida que, naquela exótica paragem, viu o guia enfiar-se, durante a tarde escaldante, dentro de um saco cama da mesma marca.

Esta perversa inocência é muitas vezes ignorada no comportamento desta adorável figura. Valoriza-se a sua suposta estupidez e a sua abismal ignorância, fazendo-se por esquecer que, nesta inconsciência tão depreciada, existe uma miríade de pequenos mundos onde apenas alguns, dos mais libertos e arejados, conseguem vislumbrar condignamente.

Divertem-se juntos.

Para mal dos meus pecados, sou uma ruiva.


O facto de me tentarem exigir um esforço adicional para atingir determinadas metas, de subtilmente procurarem provas do meu mérito ou atribuírem os louros que esporadicamente recolho ao facto de ser mulher, deixa-me descaradamente insensível ou é olhado com relativo humor.

Na mesma linha, os meus fracassos são observados com lupa e as hipérboles surgem constantes - embora não haja dano, porque ninguém como eu para empolar as minhas lamentáveis falhas.

Tudo porque, não sendo loira, sou uma ruiva.

Tudo porque sou feminina. A fortuna – camonianamente entendida -, e os fados atingem todas as colorações. O mau-olhado atinge o feminino. Ser-se mulher, ao contrário do pensado, pode não ser vantagem séria, pois que serve muitas vezes de desculpa e de álibi ao fracasso do macho. Há sempre a possibilidade de encontrar no caminho a irónica exigência de apresentação de capacidades acrescidas para reter o que é nosso, por direito ou por esforço, mas que é visto sempre atenuado ou esbatido, visto como sucedâneo muito provável daquilo que somos fisicamente.

Nunca tal me fez agitar mais do que o devido. Nunca permiti que me exigissem fosse o que fosse para além daquilo que forçoso seria de esperar.

O estratagema usado pelos meus rapagões, outrora rivais na profissão, apenas me despertava a consciência do corpo e, se o ser feminina é uma poderosa arma - de que me esqueço nos campos de batalha onde pensar é ordem de serviço -, quem a dispara é sempre o acusador.

Às vezes, possuir a arma da feminilidade não significa necessariamente que a usemos, mas é provável que o façamos no meio de sacanas, quando o inimigo nos lembra que ela existe.

Não sou uma grande feminista. Considero aliás que o machismo é uma arma excelente posta ao serviço do sexo mais fraco quando nas mãos de mulheres inteligentes. Permite-lhes apossarem-se de uma coisa dando a sensação que dela abdicam. No entanto, irritam-me os ditados populares que trazem apensos noções básicas de machismo patético. Erram consideravelmente.

Deixar que digam, por exemplo, a melhor maneira de conquistar o coração de um homem, é pelo estômago, é ouvir uma idiotice. É mais fácil conquista-lo pela lisonja.

Todos os homens podem ser alcançados pela lisonja. Até Deus - afinal o que é uma oração?