9.5.24

A Gaffe feminilizada


É interessante perceber que, num enviesado retorno a Verrsaille,  imensos criadores de significativo calibre e nome a respeitar, em 2024, usurpam descontroladamente todas as minúcias, manigâncias e particularidades femininas e oferecem esse acervo aos seus desfiles masculinos, fazendo rodopiar os seus fabulosos rapagões em trajos que facilmente os ridicularizariam, não fosse a testosterona espalhada pelas bainhas.

Não se trata de androginia, esse fenómeno que quando perfeito nos consegue cegar de fascínio, rendidas à sedução implícita na hesitação, com indubitável travo sexual, e no mistério da insinuação ambivalente – pois que se de grosseira imperfeição, desemboca nas matrafonas -, mas sim de fazer assumir uma quantidade inesgotável de peças claramente femininas por corpos de homens. São desta forma impressionantes as colecções masculinas que em 2024 são apresentadas em Paris, Londres, Milão, Tóquio, NY ou Madrid e embora nem todos os nomes dos criadores se ajustem aos que a nossa memória conserva ano após ano, acaba-se por perceber que são as recentes estrelas as que mais burburinho conseguiram fazer estalar.

Não sendo uma fashion blogger, não tenho qualquer intenção de comentar cores, texturas, linhas, geometrias, silhuetas e tretas. É-me indiferente que se refira o que se vê como futura e literal paisagem urbana. Não me aflige que se acredite que na próxima estação o nosso menino vai usar o vestidinho de alças que levamos ao casamento da prima, ou que use os tacões agulha que soçobrarão passados instantes com o peso da musculatura que os encima. Não me incomoda que se leia de forma literal o que é proposto, sem que se tenha o discernimento de separar imagens caracterizadoras de cada criador, da posterior produção evidentemente mais cúmplice da realidade.

O que é me desperta a curiosidade é a possibilidade de se colocar a hipótese de estarmos a assistir a reacções próximas das que foram observadas quando, por exemplo, Dietrich surge na tela absolutamente fatal, de smoking desafiador, a beijar na boca uma pateta que assiste a uma interpretação rouca, arrastada, masculina, soberba e superior, de uma canção vagamente perversa. Como choveu saliva envenenada nessa altura!

É maravilhoso ler as cómicas crónicas de comentadores de serviço que se servem do apresentado - e visto de modo absolutamente restrito ao que conseguem absorver -, para tentar dar largas a uma patética ironia, a uma mesquinha e medíocre forma de entendimento dos signos e dos símbolos que estão implícitos naquilo que não é mais do que uma apropriação, consciente - ou não -, de um universo transgressor e de um outro até aqui proibido, o feminino, com a vantagem de se perceber que sempre coincidiram.
 
Creio que está longe de ser ridícula a opção patente nestes estranhos desfiles masculinos. Pode ser controversa, pode ser desagradável, pode ainda ser eventualmente inestética, pode ser demasiado agressiva e muitíssimo pouco macho, mas é também a assumpção do risco, a ousadia da infracção, da desobediência, da quase irresponsabilidade e sobretudo a ruptura com o que de simbólico pertencia a espaços diferenciados com um rigor desmesurado.

Pese embora o facto de considerar parvo o que foi visto - porque sou parva e projecto-me no que vejo -, não posso negar que o biquíni de brilhantes de Fátima Lopes - mesmo se executado em pedraria falsa e usado por um peito verdadeiro - é muitíssimo mais agradável ver a brilhar num corpo masculino.

O mesmo não se poderá afirmar dos 100 homens - figuras públicas, diz quem sabe -,  que decidiram num belo dia de baloiço já passado aceitar a proposta de Luís Onofre figurando numa das suas campanhas publicitárias que apesar de não ter primado pela originalidade, acabou por funcionar bastante bem nesta horta à beira-mar plantada. Forneceu visibilidade aos que dela estavam carentes, satisfez hipotéticas fantasias, imitou o arrojo das transgressões e o criador teve deste modo assegurada uma boa divulgação do seu trabalho.

Os rapazes aparecem em poses irrepreensivelmente varonis, enfiados em cenários mais ou menos viris, em situações que não colocam em questão a sua masculinidade e de saltos altos. Tudo muito Mário Testino.

Acredito que a passerelle pode ser interventiva, sendo passível de se tornar também uma forma de participação civica e social ou reflexo das preocupações societais. É louvável que o seja. YSL já nos vestiu com o vosso smoking e não precisou de nos explicar a razão, porque foi de imediato entendida e continua activa.

Penso igualmente que não há qualquer inconveniente que seja apenas um modo de brincar levado a sério e aposto que, neste caso, os meninos se divertiram imenso. É sempre saudável gargalhar enquanto se tenta o equilíbrio seja onde for.

Há no entanto um pormenor que me deixa ligeiramente irritada nesta sessão de macho glamour.

A justificação que é dada.

Pela igualdade entre o homem e a mulher, contra os abrolhos que a cada passo entravam e atormentam o caminho das fêmeas.

Não nos capacita, pois não?

Os meninos não precisavam de invocar, de desencantar, de arrancar das unhas dos pés, uma causa destas para justificar - para se justificarem? - terem protagonizado uma campanha publicitária. Fica mais amoroso, é certo, mas não é convincente.

 Talvez porque falte no meio daquilo tudo Oliviero Toscani. Sentimos apenas que estamos a ver fotos de 100 homens de saltos muito altos e poses viris, com diferentes graus de visibilidade, a publicitar um criador de sapatos. Não deixa de ser giríssmo e jamais será errado ou condenável, mas, como uma mulher agredida diria se não receasse levar mais dois estalos depois de ouvir que foi também em nome dela que aquilo se fez:

- Que lata!