17.5.24

A Gaffe no trapézio


Todas as manhãs madame Renard dava migalhas aos pombos. Inclinava-se na varanda e entregava aos bicos vorazes pedaços de pão esfarelado. Todas as manhãs a via, velha, de cabelo branco, de bata de porteira e meias grossas metidas nos chinelos, debruçada sobre os pássaros escuros.

Todas as manhãs, na esplanada do café em frente à livraria, debicava à mesa com vista para os títulos, o croissant adocicado do costume.
Todas as manhãs o tempo era um copo com sumo de laranja feito ali e o rapaz que passava com livros e sem nome, mas que apetecia fazer com que eu inclinasse o corpo nas grades do desejo e atirasse grãos de olhar para o passeio.

Todas as manhãs, madame Renard atirava migalhas aos pombos e eu esperava sempre que eles chegassem, esbaforidos e medonhos, em debandada e cheiro adocicado e nauseante. Esperava sempre madame Renard e os seus pombos e imaginava um rasgão invadido de cor de circo na parede e tentava ouvir a voz do homem da cartola estridente:

Mesdames e Messieurs:

LA DAME AUX PIGEONS NOIRS!

Depois vinha madame Renard debruçar-se nos ferros da varanda coberta de asas pretas, bicos abertos como flores carnívoras e circulares olhos vermelhos, a atirar lantejoulas e confetis enquanto os pombos tenebrosos se viam no oscilar do trapézio de grades.

Todas as manhãs, esperava ver passar sobre as migalhas do croissant, na esplanada do café em frente à livraria, o rapaz de preto a esvoaçar com livros.

Numa destas manhãs gostava tanto de ser outra vez a adolescente do trapézio!

Foto - André Gamma