Todas as manhãs madame Renard dava
migalhas aos pombos. Inclinava-se na varanda e entregava aos bicos vorazes
pedaços de pão esfarelado. Todas as manhãs a via, velha, de
cabelo branco, de bata de porteira e meias grossas metidas nos chinelos,
debruçada sobre os pássaros escuros.
Todas as manhãs, na esplanada do
café em frente à livraria, debicava à mesa com vista para os títulos, o croissant adocicado
do costume.
Todas as manhãs o tempo era um
copo com sumo de laranja feito ali e o rapaz que passava com livros e sem nome,
mas que apetecia fazer com que eu inclinasse o corpo nas grades do desejo e
atirasse grãos de olhar para o passeio.
Todas as manhãs, madame Renard atirava
migalhas aos pombos e eu esperava sempre que eles chegassem, esbaforidos e
medonhos, em debandada e cheiro adocicado e nauseante. Esperava sempre madame
Renard e os seus pombos e imaginava um rasgão invadido de cor de circo na
parede e tentava ouvir a voz do homem da cartola estridente:
Mesdames e Messieurs:
LA DAME AUX PIGEONS NOIRS!
Depois vinha madame Renard debruçar-se
nos ferros da varanda coberta de asas pretas, bicos abertos como flores
carnívoras e circulares olhos vermelhos, a atirar lantejoulas e confetis
enquanto os pombos tenebrosos se viam no oscilar do trapézio de grades.
Todas as manhãs, esperava ver passar sobre as migalhas do croissant, na esplanada do café em frente à livraria, o rapaz de preto a esvoaçar com livros.
Numa destas manhãs gostava tanto
de ser outra vez a adolescente do trapézio!
Foto - André Gamma