24.5.24

A Gaffe por aí adiante


O que destrói irremediavelmente a imagem de um quarentão - ou cinquentão, ou por aí adiante -, é a condenada frase iniciada pelo no meu tempo eu era, seguida da descrição pormenorizada da apelativa excelente forma física e dos encantos saudosos perdidos para sempre.

Nada melhor para nos fazer acreditar que a memória do cavalheiro é um facto e que, no momento em que o ouvimos, existe apenas a carcaça do passado glorioso. Nada melhor para nos fazer crer que o presente é uma múmia daquilo que se foi no passado.

Não é necessariamente verdade e irrita.

Um quarentão - ou um cinquentão, ou por aí adiante -, devia ser obrigado por Decreto-Lei a manter silenciada a patética saudade do passado jovial e juvenil.
É medíocre o lamento daquele que se proclama envelhecido e podre, sem qualquer hipótese encantatória, incapaz de sedução e isento de charme.

Meus caros quarentões - e cinquentões e por aí adiante -, o charme é também a inteligência - e o talento -, amadurecida que trespassa e flui pelos poros - mais abertos, é certo -, e capaz de fazer pasmar e render a mais renitente das resistências femininas.

A partir deste momento esbofeteio o primeiro rapagão com mais de quarenta anos que choramingue os idos tempos em que era capaz de saltar à vara, sem a vara ou sem se preocupar com a altura em que a dita é colocada.


São os homens inteligentes - e talentosos - os únicos capazes de provocar alguma instabilidade numa empedernida e astuta rapariga esperta.

São naturalmente homens maduros, trintões ou quarentões, ou por aí adiante, desesperantes.
O talento é lapidado com as mesmas ferramentas que o tempo vai usando para aguçar a inteligência, inevitável cúmplice de qualquer dom. Os jovens rapagões são apenas espertos. Os velhos são podem ser geniais.

O cuidado displicente que uma rapariga deve ter com os homens banais não se aplica aos talentosos. Deve ser dobrada a atenção e deve duplicar a vigilância com que se evita os ténues fios de seda com que nos envolvem de repente.
A inteligência – e o talento - actua como um bruto TGV que quase nos trespassa quando na gare vemos passar apenas os regionais. Somos atraídas, contra o seu corpo acelerado, pela deslocação do ar provinciano e parco em aventuras.
Embora seja difícil resistir a um homem talentoso, não é de todo impossível identificar o modo como os mecanismos que lhe fornecem a capacidade de criar abismos de sedução estão activos. Alguns são de imediata detecção e transformam-se em sinais de alerta, minúsculos faróis acesos no cume da negrura dos rochedos:

1 - Rodeiam-se inevitavelmente de um cardume de mulheres que, fascinadas e rendidas, guardam a secreta esperança de se tornarem únicas, senhoras do senhor que as subjuga imperceptivelmente.

2 - Insinuam, ao ouvido de cada uma delas, sombras de promessas ambíguas onde a elevação ao lugar de eleita está implícita, sem nunca assinarem o decreto.

3 - No escuro dos cantos onde a vida dorme solitária, procuram fazer crer que estão rendidos aos lugares-comuns, às patetices, à poesia de cordel, de mel e malmequer, que cada uma delas vai atirando às rodopiantes águas onde pesca.

4 - Fazem acreditar que, no meio do cardume cintilante, existe apenas uma truta que querem para a sua brasa e vão nadando à volta de todas as escamas, procurando não desfazer a totalidade prateada do conjunto.


Cedo ou tarde, o homem talentoso desilude. É nessa altura que percebe que, no meio do cardume de sardinhas, nadava uma sereia que escapou. É nesse instante que desfralda a maldita nostalgia do seu tempo.