O que torna uma mulher reconhecível no meio de uma multidão de extraordinária beleza?
Os estudiosos declaram que é a simetria. Um rosto
absolutamente simétrico possui a capacidade de ser considerado belo em todos os
lugares e em todos os tempos. Atravessa as civilizações e nelas deixa marcas
indeléveis, consegue aglomerar em seu redor a generalizada opinião que eleva as
suas formas à condição de excelência e produz invariavelmente a unanimidade em
relação à formosura que possui.
Eventualmente será assim.
No entanto, tenho uma teoria diferente.
O que torna impossível uma mulher ser ignorada pode não ser
a simetria do rosto, que de perfeita é incontornável, mas a história que o
rodeia. A deslumbrante capacidade de prender o olhar, não a forma correcta do
nariz ou o langor dos olhos iguais, quase duplicados e reflectidos por milagre,
ou a harmonia constante das maçãs do rosto, mas a possibilidade de reter
histórias ou a faculdade de despertar enredos no imaginário do mais comum dos
mortais.
A beleza indestrutível é um misto de narrativas por escrever.
Acorda o talento inventivo de cada um de nós e permite-nos a adivinha, o jogo,
a fantasia, o devaneio e a ilusão de podermos alcançar a quimera que vamos sem
saber construindo a partir do que não lemos.
A simetria auxilia a beleza, mas é o poder de provocar histórias que faz de alguém único e o torna impossível de
ignorar.
Em Florença, no Palácio Uffizi, uma das mulheres mais belas do mundo, Lucrécia Panciatichi, retratada por Bronzino, inquieta e surpreende, numa tranquilidade sombria e melancólica que afasta o homem do centro do mundo, lançando a ousadia humana num qualquer ponto periférico da Criação.
Gosto desmesuradamente desta mulher e de joelhos a
venero. Nada é imperfeito. Nada se reduz ao inacabado e mesmo na perplexa
hesitação do gesto, existe a tristeza infinda de uma história que de longínqua
se reduz ao seu olhar.
Em Florença, num Palácio, uma das mulheres mais belas do
mundo espera em contido desespero que alguém entenda a doentia paisagem do seu
isolamento.
A Beleza perdura e é eterna quando na bainha do tempo está
inscrita a dor de ser sozinha numa história.
Na Igreja de Santa Maria da Vitória, na Capela Cornaro, Bernini ergeu Santa Teresa em Êxtase e esculpiu uma das mais perfeitas representações do erótico.
Quando a vi pela primeira vez, soube de imediato que seria
uma das minhas obras-primas favoritas.
As razões serão várias, inumeráveis, mas a principal é ter
achado que as horas de cada um podiam pertencer as ondas do manto da
freira em êxtase, ao turbilhão aflito do mármore do hábito da freira
trespassada.
Não ceguei. Não me despojei. Não fui trucidada pelo esmagador deslumbre de uma das mais perfeitas estátuas barrocas. O que quis foi procurar no bronze e na pedra os rastos de Bernini.
Teria lanhos nos dedos? Como havia o homem sofrido o rosto daquela mulher? Que mordia, que mastigava, que cantarolava, que dizia, enquanto erguia o braço daquele anjo? Que motes e que quadras, que lanços, que degraus, que mortes e acasos e que doridos dias?
Depois, e mais depois, e muito mais depois, senti vontade de
olhar os dentes cariados de Bernini, saber-lhe dos piolhos, dos eczemas,
das maleitas, das venéreas chagas incuráveis, dos achaques, do cheiro
nauseabundo de suor e pão azedo, dos vómitos do vinho fermentado e velho e dos
mais imundos trapos que vestia.
É imprescindível tocar o insscrito no Homem, mísero e mesquinho,
para poder tentar depois tocar nos deuses.
Eis a Beleza.
Imagem - Nikalaus Eth