12.6.24

A Gaffe público-privada


A nudez foi durante séculos - sobretudo os amarfanhados pelo judaico-cristão - o último reduto da privacidade e talvez por isso, exactamente como o seu contrário, um latente factor de domínio sobre os outros.
A perturbação no equilíbrio entre o privado e o público, desencadeia anomalias que podem dar origem a eras, a épocas, a períodos e, numa escala mais caseirinha, a alterações comportamentais, a conceitos, a preconceitos e a distúrbios aparentemente incompreensíveis.

Dizem que um dos sustentáculos da Idade Média, um dos que escorou a sua origem, foi a usurpação do que era público pela esfera do privado. Os feudos são disso prova. O retalhar da terra e a inclusão das porções resultantes no círculo adstrito à propriedade privada, tornou possível o exacerbar do domínio sobre o Outro que foi engolido, como parte do usurpado, pelo poder de quem detinha a capacidade de chamar seu ao até ali de muitos.
A anulação do privado em favor do público, abala e destrói as monarquias e os impérios anteriores e sustenta ideologias que acabam por não produzir o equilíbrio frágil e absolutamente necessário entre meu e nosso.
Esta mecânica, aqui referida de forma insipiente e torpe - incapacidade minha -, é observável nos jogos e nas guerras travados nas redes sociais, na publicidade, na comunicação social mais fútil – eventualmente quase toda -, e que reverberam nos modos de se olhar o Outro.

O corpo torna-se público. A nudez deixa de possuir o seu carácter reservado, de índole privada, pertença exclusiva do indivíduo, e é exigida com voracidade pela multidão que a torna sua e que nela se reflecte escolhendo os indícios que ali cumprem o sabor do gosto que se impõe. Ignora-se, apaga-se ou subvaloriza-se o restante com a velocidade do relâmpado de um olhar. A visão da nudez do Outro é toldada e contaminada por conceitos estéticos mutáveis que exigem um imediatismo destruidor na resposta e no estímulo. Somos nus públicos, dependendo das multidões que se tornam ferozes quando o que lhes é fornecido não obedece ao almejado pela quimera da perfeição. A multidão que se une sem ter consciência racional do elemento que a aglutina é quase sempre um anseio de superação de cada indivíduo que a enforma.

O domínio descontrolado exercido pelo público é tão devastador como aquele que é exercido pelo privado quando desarvorado.

O corpo público obedece então a todas as exigências daqueles que o devoram, acabando única moeda de troca. Fornece a ilusão de todas as quimeras, de todas as perfeições, recebendo das multidões a ilusão de uma espécie de existir dentro de uma espécie de verdade que é consequência da tremenda ilusão de reconhecimento, de aceitação e do aplauso.
É nessa variante, nesse desvio da nudez que de súbito é exigida despudoradamente pública, que o corpo é imolado.

Tornamo-nos implacáveis. Clamamos contra a perpetuação desta anomalia, carpimos a nossa vítima, depois de lhe termos exigido a pele e os músculos, e dentro de uma preguiça soberba e quase patológica, doentia, maníaca, subversiva, disforme e coberta com os lençóis da nossa conspurcada e mentirosa inocência, continuamos a insinuar o que o Outro tem de fazer para que o possamos aplaudir.

Somos agora, paradoxalmente, uma multidão medonha e animalesca quando em privado, numa espantosa normalidade, lambemos a ilusão da perfeição do corpo e da nudez dos bonecos que injectamos com o reflexo da imagem que nunca será a nossa, como se tivéssemos um espelho capaz de nos mentir, omitindo a queda inexorável que é a vida.

Somos todos - carrascos e vítimas -, de cartão e todos temos pés de argila. Debruçados na margem do rio, procuramos na água uma jangada que nos faça chegar ao outro lado, mesmo que no outro lado não se encontre nada.