23.6.24

A Gaffe no pedestal


Contava a minha avó que em tempos ido uma das suas amigas favoritas ao passar por uma chapelaria – Chapéus de senhora e cavalheiro – no Porto, na velha rua de Stª Catarina, se encantou com um busto feminino que na montra ostentava um magnífico chapéu com duas penas negras.

Entrou e confessou que por aquela cabeça de boneca pagaria o que lhe fosse pedido.

A moçoila do balcão, encarregada da loja, firmou que era peça que não estava à venda, troçou do excêntrico desejo e gosto da senhora e perante a sua insistência decidiu calçar chinelos, traçar o avental e aproximar a chapelaria das bancas do Bolhão, ali tão perto.

A senhora saiu de mãos vazias.
Meses depois comprou a chapelaria e despediu a mulher.
O busto era dela finalmente.

Por manigâncias do destino que se tornam enfadonhas referir aqui, tenho-o agora na sua peanha Arte Nova pousado na mesa de vidro, a esquecer-se no no Douro.
Para além da sua indiscutível beleza guardada nos olhos lânguidos, nas ondas de madeira do cabelo, na boca breve desenhada pelo bâton rigoroso e nos adornos subtis que identificam a corrente artística que a esculpiu, a cabeça agora sem chapéu esconde a história da mulher que perdeu o emprego por ousar negar com demasiado alarido vender aquela peça.

Sei-lhe o nome, porque foi o nome dado à mulher do busto. Chamava-se Luísa. Não sei mais nada.

Aquando do sorteio, os deuses raramente retiram a bola branca que dá acesso a alguns a quase tudo sem restrições ou constrangimentos, mas são largamente generosos quando constroem estas minorias e brutais com os que restam.

Sou suficientemente fútil e superficial para passar ao lado das grandes dores sem queimar as asas da minha indiferença, recuso equacionar todas as tolices do Universo e, embora não se perceba muito, não sofro de grandes angústias existenciais.

No entanto, ao olhar para a Luísa, dói-me sem eu saber porquê o abismal e tenebroso buraco negro e vazio que se ergue daquela peanha Arte Nova.