16.6.24

A Gaffe perfumista


Uma das mais prestigiadas casas  do Porto, na geração dos meus avós e dos meus pais, era a Perfumaria Castilho.

Situada numa importante artéria da cidade, em frente à Brasileira onde os empregados antipáticos serviam o chá e o pastelinho a senhoras empoadas e emproadas e cimbalinos e água das pedras a pretensiosos e pretensos cavalheiros que liam o jornal, a Castilho era uma referência para a burguesia e alta burguesia portuense.

A chusma de empregadas conhecia as manias das clientes e estabelecia laços de cumplicidade estética e de cosmética conivência, mantendo gorduchas as prateleiras repletas de aromas e de cremes, de unguentos, de sais e de feitiços femininos e secretos.

Nunca fui cliente. O desprendimento e a impessoalidade com que as perfumarias das grandes superfícies me atendem, acabam por me agradar e me tornar mais rápida na compra. A Castilho foi durante anos apenas a memória do perfume da minha avó, nas tardes de Primavera em que a senhora decidia abandonar a essência de Inverno.

Passei há alguns anos pela Castilho.
A montra anunciava descontos em todos os produtos e expunha o perfume difícil do meu pai. Entrei.
As prateleiras desdentadas, desoladas e empobrecidas, encostavam aos cantos os restos parcos do passado glamoroso e as duas empregadas que sobraram, empastadas de tédio, de braços cruzados e olhos vagos, acabrunhantes, estendiam o tempo no exterior a passar demasiado lento pelos turistas indiferentes à decadência da loja.

Perguntei o preço do que queria.
Não sabiam. Não estava marcado.
O computador indicava produto inexistente.
A senhora encarregada da secção tinha ido almoçar. Chegaria dentro em breve.
Não tinham o contacto da senhora que tinha ido almoçar.
Não havia ninguém que se prontifique a deslocar-se ao restaurante que com certeza era próximo.
Deixaram-me a aguardar durante a meia hora em que cirandei e experimentei batons com as cores cansadas. Nada se resolveu. Nada me foi dito ou explicado. As duas raparigas de silêncio cruzado iam olhando a rua que passava depressa.
Saí  sem que terminasse o almoço da senhora responsável pela secção e pelo preço do que já não queria.

A decadência torna-se visível quando acreditamos que a merecemos.

A Castilho já não existe.