A Manuel Alegre
Caríssimo Manel,
Devo, antes de tudo, apresentar o meu pedido de desculpa por
esta ser uma carta aberta. A culpa, meu querido, também é sua, pois que defende
aquelas concentrações maçadoras de gente com imensos cartazes ruidosos. Ficamos
sem empregadas para lamber os envelopes. Desde já lhe digo, meu caro, que não
volto a corrigir os erros ortográficos que se vão lendo nos papéis que aquela
gente leva aos gritos para as manifestações. Nunca mais lhes digo que AQUI
NÃO Á TACHOS tem mais um h – até porque ambos sabemos que não é
verdade o que lá se diz. As nossas cozinhas são imensas e dizem-me que bem
apetrechadas.
Depois, tenho de assumir que nunca compreendi a poesia e mesmo a prosa deixe-me que lhe diga. São nuances de uma rapariga simples. Este dado, meu
caro, faz com que o entenda muitíssimo bem. É um silogismo tão acessível, não
é?
Apreendo que a si ninguém o cala e depreendo que os amigos
escasseiam. É o chamado já não há cu p’ra ti - como diria o resignado
Rei de Espanha se não fosse de boas famílias -, mas sou obrigada a concordar
consigo quando chama à lide Picasso, Goya, Hemingway ou Bárbara Tinoco, nas
arenas que defende, se considerarmos secundário reconhecer que a única vez que
Picasso não foi um escroque com as mulheres - mulheres de carne e osso - foi
quando pintou A Primeira Comunhão, ou mesmo ignorar que o genial
artista não virava os cúbicos costados ao estalinismo; é um absurdo pensar em
Goya no El Tres de Mayo en Madrid e convém esquecer a forma como
Hemingway se finou, porque se referirmos estes pormenores, baralhamos imensa
coisa que deixa então de servir para figurar na moldura humana das arenas que
lhe são caras. Eu sei, meu querido poeta, que não referiu Bárbara Tinoco,
mas apeteceu-me muito falar nela, assim como não quer era coisa - e
as coisas que ela canta - e porque talvez assim alguém se lembre de lhe espetar
uma ou duas bandarilhas.
Estou consigo, meu querido, quando faz por esquecer D. Maria
II que proibiu as touradas em Portugal por as considerar um retrocesso
civilizacional.
A real senhora já morreu, era um camafeu – o que não
interessa nada, pois que era rainha e nós, lindíssimos, só temos o subsídio de
férias - e com certeza nunca viu, mais ao perto, aqueles corajosos, viris, testoteronos, testosteronados, enfiados em fatos
de spandex, de latex, de lycra - seja o que for, estica -
repletos de lanteloujas, berloques, vidrilhos e galões dourados e polidos que
lhes moldam os rabos redondinhos e lhes desenham as pilas, para humilhação dos
bichos e alegria das fêmeas – não digo bichas para não ser mal
entendida - e de sabrinas a fazer pandant com o bolero. Tudo muito macho. Se tivessem forçado Sua Majestade – que nunca se pôs a
jeito, que se saiba -, a enfiar um pelo olho dentro, para além de poder
exigir indemnização, com certeza que não manteria a posição.
Infelizmente, poeta, não faço parte da moldura humana do que
defende de modo tão viril. Não é, de todo, por pirraça, mas, se reparar, o
caixilho feminino em que figuraria se a tal pertencesse, é sempre composto por
todas as versões de cinhas jardim e lilis caneças, nas suas centenas de etapas
e metamorfoses, e não me diga, meu querido, que este facto não é um
retrocesso civilizacional que desta vez fico mesmo zangada consigo.
Devo dizer-lhe, caríssimo, para o tranquilizar - apesar de
achar que existem outras formas dos meninos compararem os tamanhos das pilas -,
que os bichos também não me interessam. Sabe como odeio padrões tigresse e
estampados a picar leopardos. Fiquei mesmo traumatizada quando vi a minha
massagista com umas nails zebradas. Senti, estarrecida, que iria ser
apunhalada, numa selva qualquer, sem assistência religiosa. Sabe que odeio as
vacas que não se cansam de me acusar de sobranceria - são amorosas, eu sei, mas
não lhes pedi opinião -, e que não simpatizo grandemente com os cavalos dos
empregados que fazem manifestações e me deixam as coisas por tratar - sobretudo
o puro-sangue que me limpa a piscina e que usa uns calções tão exíguos que lhe
deixam a bandarilha toda a notar-se.
Finalmente, meu caro, para me sentir digna de a si me
dirigir, cito Voltaire à laia de desculpa:
Escrevo-vos uma longa carta, porque não tenho tempo de a
escrever breve.
Então vá. Olé.
A Duarte Pio
A meia dúzia de pessoas que são contra as touradas, também
são contra a família, são contra a cultura portuguesa, são contra o facto de
haver uma tradição em Portugal - declara D. Duarte Pio de Bragança.
Esta gentelha de bigode parvo - pergunta a Gaffe -, não
estuda, não viaja, não vê coisas, não lê livros, não se ouve a mascar merda?!
(Pardon my french)
No Douro, nestes casos, pergunta-se também:
- Estes morcões não se mancam?!
O que é absolutamente deselegante, não deixando contudo de
ser uma formulação repleta de tradição e muito própria de quem não entrou no
curso preferido devido - ou derivado - ao numerus clausus, não
tendo aberta a hipótese de o pagar a custos de mercado.
Gente do Douro, sem maneiras e sem curso, de maneiras
que nada nobre, nada familiar e nada cristalina, derivado à
falta de berço.
Gaffe - 2018