A Gaffe foi espreitar a novíssima fotografia de Marcelo Rebelo de Sousa ajoelhado a rezar e ficou estarrecida com a celeuma que a reza causou, parecendo arrepiar a NATO, as Comissões de Trabalhadores, a Ordem dos Psicólogos, e praticamente o facebook inteiro - com excepção de uma ou outra beata.
Congratula-se no entanto por saber que foi aplicada a
tradicional parolice portuguesa, justificando a existência desta coisa com
o facto de se verificar que é marketing adoptado por algumas
individualidades estrangeiras… no estrangeiro.
A Gaffe admite que as únicas criaturas de joelhos que suporta usam
barba, medem mais de 1.80m, são encorpadas e em excelente forma física, não a
incomodando que chorem, rezem e chamem pela mamã nos momentos de maior aflição,
pois que fornecem as coordenadas para devolução. Talvez por isso não possa
cavalgar a onda de pasmo que se ergueu numa nazaré laica e digital.
No entanto, faz notar que esta operação publicitária plagia
com um desplante inaudito um adorável e utilíssimo programa onde César Millan
transforma cães irritantes, desobedientes e pessimamente educados, em exemplos
de cortesia e de civismo, usando pequenos truques, pequenas regras e pequenas
trelas, treinando muito, recompensando imenso o comportamento assertivo dos
bichinhos e fornecendo aos donos as aptidões necessárias a uma urbana
supervisão do animalzinho e a um bom e são convívio com o próximo.
Ninguém atira Cesar Millan às feras, mesmo depois de um dos seus
maravilhosos resultados ter atacado e assassinado um porco domesticado – diz quem
sabe.
É visível que o entertainer Marcelo Rebelo de Sousa está
ali no papel de um devoto mascarado - e que bem iluminada e tão
convincente interpretação! - ou, em alternativa, a provar que os exorcismos não
estão de todo ultrapassados e que os serviços que prestam seriam de utilidade
extrema, ou à extrema-unção, perante o aparecimento ruidoso, a um canto de um
milhão de quartos, de um partido político chefiado por uma espécie de belzebu de
filme barato e mais ou menos negro, que chega seguido por um séquito de demónios em
riste, rígidos vómitos de alcova de horrores com transes de cachopa possuída
pelo maligno.
Oremos.
Rezamos agora, mas num tempo que já lá vai - ou não tão perdido assim - era uso e costume corrigir o comportamento anormal dos petizes com a ameaça da polícia que ali vem e prende, com um rapto perpetrado por ciganos, ou mesmo com a certeza da ausência do Pai Natal benévolo e bonacheirão - ligeiramente pedófilo -, que se transformava num monstro maldoso e maldito escondido debaixo da cama das nossas infâncias, pronto a saltar-nos em cima mal o sono dominasse. Quando crescemos, esta hipótese é encarada de modo distinto consoante a quadra que vivemos, o sono que temos, a forma física do monstro em causa e o espírito que nos invade em diferentes alturas do mês, mas essa será uma outra cena.
É de lamentar que estas astúcias usadas para corrigir os nossos
petizes, não possam ser aplicadas aos nossos petizes democraticamente eleitos e que - tendo
em consideração os belos resultados que se obtinham e a consciência
da proficuidade da repetição -, resultavam em casos absolutamente diversos e em
lares absolutamente díspares. Marcelo substituiu-as por mantras e orações e pese
embora a convicção - que se diria entranhada - da beleza e da tranquilidade do cenário,
são da mesma família do imaginário abandonado, mas sem os mesmos resultados.
No entanto, se caso, depois dos retiros quinzenais e das pias rezas presidenciais, a criança não morder o povo, então Marcelo poderá afirmar que o adestramento operado pelo Senhor foi um sucesso e é possível nesse caso, escancarar as portas todas, todas as pernas, todos os braços, todas as janelas e todas as frinchas, destelhar a casa e destampar os tachos, mostrando ao mundo os laços cor-de-rosa da perfeição rentável, harmoniosa e cooperante. Se não resultar volta-se à prece.
A Gaffe apercebe-se que o conceito de privacidade - e de intimidade - sofre
mutações significativas. Se a velha Roma desaguou na Idade Média foi também
porque o público se tornou privado, e o privado foi encarado em público.
Sobrevoa-se, agora digitalmente, a privacidade das gentes, paira-se sobre a
superfície da intimidade dos outros, com breves e leves e convencidas asas que
se abrem e fecham num direito adquirido que ignora a fragilidade quase doente –
doentia? -, de uma nova espécie de ilusório enclausurar, encerrar, proteger o
que é privado, que paradoxalmente divulga - em post ou em formatos
vários e se possível rentáveis -, um conceito alternativo de tragédia e de
comédia, de sucesso e de insucesso, de fracasso ou de vitória, de decência ou
desvergonha, que irmana e igualiza os responsáveis pelas criaturas dignas de
figurar na capa do catálogo de Deus e pelas outras que carecem de exorcismos.
A privacidade torna-se apenas um botão num blogue que o torna
inacessível a estranhos, o clicar no facebook destinando-o em exclusivo a amigos, o Instagram que escolhe o ângulo
onde a língua não tem aftas, o nude que
é enviado apenas aos protagonistas do fim-de-semana passado. A intimidade
transforma-se numa película transparente que se rompe quando alguém morde o
porco de Millan.
O direito ao olhar público e do público sobre este novo conceito
de interior individual, íntimo e particular, torna-se direito adquirido,
instintivo, motivador e empolgante, capaz de facilitar naqueles que o exercem o
surgimento das latentes capacidades de julgar - condenar ou ilibar -, o que é
voluntariamente revelado ou conspurcado e, em simultâneo, favorecer a
divulgação de um resumo do que deveria ser calado na vida destes novos juízes,
já que, como nos diz um amigo tonto, a nossa intimidade é a consolidação
da dos outros.
A Gaffe lamenta o abandono do cigano raptor, do polícia psicopata, ou do educativo Pai Natal que castiga. Eram imagens que nos assombravam até à morte, contrariamente às que reveladas e despojadas de provacidade, não deixam rasto, nem trilho, nem marca, produzidas por sisudas e devotas conversas de solitários com amigos imaginários, e que não impedem que os cães de elegidas imaturidades tresloucadas ataquem e mordam os eleitores já domesticados.