7.6.24

A Gaffe traída


Haverá vida depois de uma traição?

A questão não é trivial, básica ou mesmo inconclusiva. Atinge uma enorme quantidade de gente que se vê de súbito sem chão e sem tecto, suspensa da surpresa de se sentir o outro ou a outra quando sempre acreditou que era a origem e o fim de todas as emoções que povoavam o coração que agora se descobre ser infiel.
Não é fácil lidarmos com o facto de percebermos que a metamorfose que se opera em nós é o inverso da das borboletas. De um fabuloso insecto alado e colorido, embainhamos a alma e passamos ao estado de casulo. Mas não é impossível enfrentarmos o facto de, nesse casulo, a membrana que nos separa do exterior correr risco de ruptura, perfurada pelos aguçados chifres mafarricos que ostentamos na testa metafórica.

É evidente que a Gaffe já foi traída. Na altura, ficou afásica e posteriormente catatónica. Recolheu-se na cela da sua mais profunda desilusão e decidiu que jamais voltaria a acreditar em quem quer que fosse, sobretudo se o quem quer que fosse tivesse barba e outros atributos mais esconsos dignos de fazer perder a transmontana - uma do Norte vigoroso e resistente.
Neste estado, acabou por evitar a todo o custo aproximações mais ou menos subtis de promessas interessantes e credíveis.

Voltar a acreditar é como beber um café que ficou frio. Jamais terá o sabor do Expresso acabado de servir, mesmo que esse Expresso seja o da meia-noite. Ficamos sempre com a sensação de que nele foi cometido um crime e que o cadáver se transformou em borra no fundo da chávena.

Sair deste estado de letargia emocional leva algum tempo, mas há sintomas de progressos que não devemos ignorar e que não passam pelas tradicionais fases descritas nos manuais da especialidade.

A Gaffe detectou que começar a observar com algum gelo o exterior da rival é um belíssimo sintoma. Se o interior da dita fosse objecto da sua atenção, significaria que a procissão ainda estaria no adro e o sacristão sem badalo.
A capacidade de olharmos os detalhes e os pormenores mais imbecis de quem foi causa directa da nossa perda é caminho feito para a consumação do fim da mágoa de nos sentirmos traídas. Se Deus está nos pormenores, a indiferença também. Talvez por isso tenhamos a sensação que as duas entidades muitas vezes se confundem.

A Gaffe se vê passar a rapariga por quem foi trocada, não entra em coma, não vai desenfreada lacrimejar para uma esquina da vida, nem sequer lhe salta à memória os momentos de enlevo romântico que o traidor lhe entregou um dia.
A Gaffe olha para a carteira da ladra e pensa que preferia usar um saco de colostomia e descobre de imediato que é apenas no amor que é permitido roubar.

A Gaffe foi traída num passado longínquo, gelado entretanto.

A fidelidade da maioria de nós tem raiz no medo. Somos muitas vezes fiéis por cobardia.

A Gaffe sorri, traída há muito, muito, muito tempo, e faz esvoaçar caracóis ruivos.

Ilustração - Cupido de  Gustave Doré