7.7.24

A Gaffe bipolar


Aprendemos a envolver a mágoa em algodão, pousá-la com cuidado numa caixa, fechar a tampa e colocar depois o relicário numa das estantes mais escuras da alma dolorida. 

Não acredito que desapareça da memória o local onde a pousamos. Por muita poeira que sobre ela tombe, se a levantamos para lhe sentir o peso, fica no chão do peito a marca que ela deixa.
Ocupamos a alma com caixinhas destas e mesmo sabendo que ficam para sempre as marcas impolutas no polido e no limpo das estantes, continuamos a manter a colecção.
Assusta-nos perder a dor, tanto como a de a sofrermos. Custa-nos quase tanto abandoná-la como nos custou a penar, talvez porque seja o que nos resta daquilo que perdemos . A memória do que nos foi doloroso surge quase como paradoxal prolongamento do prazer que obtivemos um dia.

A dor engana tanto como o seu oposto e acreditamos que, na caixa onde repousa em algodão, ao tocar o monstro que ainda nos fere, conseguimos em simultâneo despertar a ténue recordação do seu reverso. Por isso mantemos pela noite dentro a dor que sentimos outrora. Invoca e retém o que lhe deu origem ou o que de feliz a antecedeu.

É a memória da Alma.

Se tocarmos a dor, encontramos um lugar de partida - há sempre partidas e chegadas quando Pandora move o braço -  do suave milagre do beijo que se deu ainda cedo, no tempo permitido do começo. Se abrirmos a dor encontramos a ingenuidade, a inocência do mais completo acreditar ou do mais perfeito crer no amor. Se movermos a caixa de algodão, um fio da memória tange e há guitarras. No entanto, tudo é apenas um reflexo daquilo que fixamos no luzir de um voo breve e leve

A memória da Alma é bipolar.

Fotografia - Vincenzo Balocchi, 1950