Para o espectáculo de Joaquín Cortés - há imenso tempo, pois que o homem já não foi para novo -, a Gaffe exigiu ficar na fila da frente, a um palmo do bailarino de forma a mais facilmente lhe observar os arabescos flamencos e o rabo.
O homem de tronco nu arrebatava e todas as vezes que batia com os tacões no chão era o coração desta rapariga que esmagava.
Numa das suas piruetas suadas de latino insuperável, soltou-se o cabelo preso de Cortés batendo-lhe na cara. Neste movimento de chicote dramático a Gaffe sentiu que tinha sido atingida por salpicos de suor. Pode não ter sido nada, mas esta doidivanas é perversa. O seu rosto pálido de hipnotizada tinha sido tocado pelo portento!
Embora este milagre tenha ficado ligeiramente diminuído pelo facto das supostas gotículas do deus lhe terem atingido um olho, a Gaffe pensou que iria levitar a qualquer instante. Segundos depois a cruel realidade assassinou-lhe o êxtase e a Gaffe decidiu lavar a cara, toda enojada.
Este episódio, misto de esoterismo e de WC, levou-a a encarar a dança como um meio revelador e implacável da personalidade masculina.
Ao dançar, os homens descobrem-se.
O leque é vastíssimo e a Gaffe só frequenta comemorações BCBJ, mas há denominadores comuns em todo o ritmo.
A Gaffe não se refere àqueles que acreditam ser o cruzamento - respeitável e legal - entre Gene Kelly e Fred Astaire. Normalmente fazem com que nos apeteça imitar a Duncan, partindo no descapotável a uma velocidade estonteante, preferindo a fatalidade esvoaçante do lenço Hermès a ter de assistir à performance do anjo do Apocalipse.
O primeiro foco de atenção é o homem que dança como se estivesse a ser vítima de uma experiência religiosa ou que anda a fumar o que sobrou de Woodstock. Fecha os olhos, ergue a cabeça, fica os pés no chão e oscila. Se abanar os braços que pendem desossados, significa que o ritmo lhe agrada particularmente. São homens que de uma palavra nossa, por mais banal e inofensiva que seja, conseguem dissertar durante longas horas, citando ao mesmo tempo Sartre, Nietzsche, Kierkegaard e toda a colecção RTP de bolso, acreditando que não nos apercebermos da saliva com que cola as citações. Crêem seriamente que o amor é uma catarse e que deve ser vivida no interior de cada um de nós para extravasar no palco do nosso desespero. Nunca acertam nas deixas e deixam que todos os lances em que contracenam pareçam escritos pela barata de Kafka. Geralmente ficam sozinhos no fim da noitada a ruminar o sentido da vida e a acreditar que somos parvas por termos desatado a fugir ao ritmo do samba.
Há depois os homens que ouvem coisas.
Se a pista se move ao som de Viena, agarram a parceira ao ritmo de Presley. Se o swing permite pensar duas vezes, agarram o chão num bater de blues. Se o compasso é ternário, arranjam maneira de o fazer depois. Nunca acertam e por nunca acertarem os mais ladinos arranjam modo de simplificar compassos, dançando sempre o mesmo. Normalmente usam-nos como balança. Controlam o peso, calcando-nos. Pela intensidade dos nossos gritos percebem se engordaram.
São homens que nos chegam a conquistar pela incapacidade total de intuírem os nossos desejos, mas raramente chegam a horas aos nossos corações, porque supõem que é o fígado que nos comanda os humores. São quase todos doces por ingenuidade e encantadores por distracção. É fácil vê-los rodeados por mulheres que se sentem seguras com a ausência de perigo eminente.
Há também os pequeninos. São óptimos bailarinos ou então comentadores de um canal de televisão.
A Gaffe tem de admitir que está cansada de fazer bailar os dedos pelas teclas. Abandona o baile por findar e promete voltar à dança quando lhe aprouver e a música for do seu agrado ou quando conseguir decifrar o homem mais estranho e mais complexo da pista das suas noites debutantes.
Aquele que não dança.