16.8.24

A Gaffe de Gôndola


Pela 1ª Via, saio do Rialto, labirinto espinhoso, de finas e estreitas ruas quase em penumbra corrompido, esgadanhado em ocre e em laranja enferrujado. Casario encaixado em sombras súbitas onde os riscos de luz parecem prostitutas nos vértices das esquinas.

Saio do Rialto pela 1ª Via e entro no equilíbrio dramático da Piazza di San Marco, diante da boca do Grande Canal.

A luz é doirada e há poalha húmida a pousar nas pedras. A Praça é de murmúrios. A harmonia de fio-de-prumo impede o vozear das gentes.

A minha irmã fala-me da deslumbrante cadência da mescla arquitectónica da Praça. Discute o Simbolismo, o Magmatismo e o Genius Loci e aponta-me as colunas de Nicolo Barattiero, na Piazzetta, erguidas por ordem de Sebastiano Ziani, o Doge de que não sei contar a história e que ela sabe.

Não a ouço.

Vejo-a pela primeira vez a sorrir sem hesitar, dócil numa cidade que a conquista passo a passo. Parece um pássaro na Praça de outra parte e isso agrada-me.
Sentamo-nos numa das pequenas esplanadas da Piazzetta, abrigadas da manhã e do miúdo vento ainda sem corpo, mas que lhe toldaria o cabelo, se não preso. Os olhos pardos engolem a cor das pedras e da água, como se Veneza compulsiva não conseguisse deixar que o seu reflexo ficasse impune no olhar de quem a vê.
Na Piazza di San Marco, numa manhã de cor doirada, a minha irmã sorri, desfaz o lenço que traz ao pescoço e da carteira Kelly, cinzenta quase negra, retira o vermelho sangue do perfume e crava no punho quase o nome dela, Rush. Agora tem Veneza no seu pulso, que a cidade já lhe tomou o resto.
É através desta mulher que eu obedeço à vontade de La Serenissima. Visto Dior em preto, cintado e justo fato de colecção recente e trago gola subida de Cerruti.

Não sofro. É-me indiferente esta vassalagem mansa ao incontornável allure desta cidade. Veneza e a minha irmã, suseranas senhoras da minha vontade.

- Ficas muito bonita quando me deixas escolher o que vestes.
- Estou só mascarada. Mas se te agrado, aqui me tens na gôndola do inútil.

Sorri mais uma vez. Mistura os dedos nas pérolas antigas do colar e sussurra demorada:

- As gôndolas inúteis são as que nunca nos atravessam o corpo, minha querida.

Depois afasta-se de mim e aponta com os olhos já de lâmina o homem que deseja e que nos segue desde o início desta manhã na Praça.

Fotografia - Ernst Haas, 1955
Gaffe 2022