Quando na Praça de S. João e S. Paulo, em Veneza, me deparei com a estátua equestre de Bartolomeu Colleoni de Verrochio, não obriguei a minha vida inteira a ajoelhar-se perante o poderio frio e seguro do condottiero de bronze.
Adivinhava-lhe a imponência clássica do homem que domina falcões luminosos, cães fenomenais e cavalos lendários, deixando a docilidade dos ambíguos arminhos, a alegria pilrritante dos coloridos pintassilgos ou a placidez dos impenetráveis coelhos, nas mãos da fragilidade das mulheres quinhentistas.
Sabia-lhe do quebrar do conceito de frontalidade que fascinava e viciava os clássicos e obedientes mestres da estatuária da época.
Por isso Bartolomeu Colleoni não se impôs, não me escravizou, não me obrigou a gravar no tempo que guardo para a memória, um lugar cativo com o seu nome em bronze trabalhado.
Eu esperava-o.
Só entendi completamente a derrota do Condottiero quando pasmei esmagada, na Igreja de Santa Maria del Popolo, com Caravaggio e a Conversão de São Paulo.
Quase ruinosamente erótico, liberto do traço e da iconografia clássica, o homem pintado tombado, aberto, de carne, arranca-nos a vida de repente e de repente lança com violência a nossa alma no espaço da divinal surpresa que é o Homem.
O humilhado desarçoado pelo cavalo é poderosamente mais tirano do que o gigantesco Senhor dono de Veneza.
Quase ruinosamente erótico, liberto do traço e da iconografia clássica, o homem pintado tombado, aberto, de carne, arranca-nos a vida de repente e de repente lança com violência a nossa alma no espaço da divinal surpresa que é o Homem.
O humilhado desarçoado pelo cavalo é poderosamente mais tirano do que o gigantesco Senhor dono de Veneza.
Nenhum potentado é dominador inquestionável quando não tem a arma do inesperado absoluto disparada no centro da vida dos incautos.
Gaffe, 2022