11.8.24

A Gaffe dos guerreiros


Salvaguardando o meu direito de escrever tolices, suponho que o latim se preservou mais facilmente e sem grandes solavancos nas regiões limítrofes do Império. Roma, a capital do gigante, promoveu, aceitou e modelou as alterações à língua de modo natural, dinâmico e acelerado, enquanto os seus longínquos destacamentos se mantinham fiéis à velha guarda.

A distância possibilitou a preservação.

O facto de Edimburgo, ou outro qualquer centro urbano, ficar muito distante dos recônditos lugares das Terras Altas, permitiu, por exemplo, que as tradições, os costumes, os conceitos, as lendas e os rituais, permanecessem sem alterações significativas e que se reproduzam hoje bastante próximos da origem.  

Admito que de lendas, rituais, costumes e tradições tinha eu estantes preenchidas antes de partir. Admito que, pecaminosa e fútil, desdenhei um conhecimento mais profundo dos meus anfitriões. Reconheço que me estava a borrifar - ou nas tintas, como vos aprouver -, para a carga simbólica de uma determinada narrativa mais rochosa ou de um enunciado mais esotérico eivado de pepitas de paisagens místicas e míticas.

Dediquei todo o meu inútil tempo à mais profunda superficialidade, à mais descarada das preguiças - a que nos faz apenas mexer os olhos - e à mais vergonhosa - mas maravilhosa -, das actividades lúdicas: fazer de conta que não se existe enquanto se espreita a existência dos outros.    

Em consequência, sentava-me num banquinho deselegante e assistia a um torneio.

É realmente impossível de descrever.

As cores - mesmo as que não existem e que se inventam ali, porque hoje é festa -, os gritos fabulosos de incentivos galhofeiros, as malditas gaitas, os tambores a rufar até ficarmos todas com as maminhas a vibrar, a extraordinária felicidade a estourar por todo o lado, a radiante vontade de viver, um entusiasmo contagiante, as bebedeiras monumentais, o rodopio das gargalhadas, as bandeiras, os estandartes, os porta-estandartes, os postes dos porta-estandartes, os abraços a torto e a direito e até canhoto, as cantigas soltas em sotaques velhos e tudo mais que não se diz, que não sabemos, faz-nos sentir arremessadas por um tufão de alegria que empurra para ombros vencedores os que caíram depois de lutar com todo o corpo.

Maravilhoso!


 Voam estafetas; saltam medas de feno; agarram em medas de feno; agarram em barris de madeira, um em cada mão; agarram em lenhos brutos que serram; agarram em bolas de ferro que arremessam depois, em paus, em picaretas, em pás, em tudo o que servir por ser pesado; penduram-se em ferros; baloiçam em cordas; puxam cordas com blocos de pedra amarrados; atiram pedregulhos; lutam uns com outros; correm, correm desalmadamente, correm como se disso dependesse o extinguir do Brexit e fazem tudo isto e mais que se me escapa por ser tão muito, revelando a cada passo e cada salto, a cada pincho, a cada sopro, a cada arremesso, a cada queda e a cada descanso do guerreiro espalhado na relva, os segredos dos Kilts:

Os kilts são usados sem cuecas!

Do meu banquinho inocente nunca vi tanta pila aos saltos.

 Eis que se destrói a dúvida que parece nunca ter pertencido às robustas escocesas que ao meu lado aplaudiam muitíssimo entusiasmadas sempre que uma piloca se esbandalhava à frente dos seus incentivos. Fizeram-me compreender que, ao contrário do que seria de esperar, não interessava um pirolito quem ganhava ou quem perdia - nem sempre o vendedor era o aclamado -, mas o modo como a pila do guerreiro esvoaçava, o ângulo em que a dita se pespegava nas nossas vidas tão competitivas, na quantidade de rabo mostrado, nas proporções e equilíbrio - ou ausência dele - das que me fizeram divertir ainda mais do que as mocetonas escocesas já causticadas e no tempo que levavam a ser cobertas pelo tartan traiçoeiro.

De todos os jogos, o mais popular, o meu favorito, e o que mais alarido provocou, era o que obrigava os homens de um clã a puxar uma corda grossíssima onde na outra extremidade o clã rival dava tudo o que podia para os derrubar. Não era de todo o mais espectacular, mas era ali, com as botas fincados na terra, rabo assente no chão, pernas abertas e braços estendidos de músculos retesados, que os rivais deixavam que o público visse todo o poder, toda a valentia, toda a força e todo o material de que eram feitos.

Até eu, que sou tão avessa a este tipo de competição, escolhi, bem no meio de todos, o meu maravilhoso perdedor.

Gaffe, 2023