24.6.20

A Gaffe muito irresponsável



É impressionante verificar como a teoria culpabilizante do vivemos acima das nossas possibilidades, entranhada e transformada num reflexo pavloviano, se transforma de repente na de novo culpabilizante somos uns irresponsáveis e destruímos o milagre portuguêsquando os números de infectados pelo vírus pandémico cresce ao ponto de colocar este recanto que albergará a Champions League - em estrangeiro, para provar que somos cosmopolitas e não apenas um aglomerado de parolos, provincianos e deslumbrados que apanha com sofreguidão os caídos europeus com a rejubilo dos indigentes - num lugar cimeiro na lista dos países mais doentes. 

A ausência de respeito pela lógica, a constante ambiguidade, as duplas, triplas e contraditórias posições e opiniões e imposições dos meninos e das meninas - bom dia, Graça Freitas! -, que nos governam e que, diz o povo, dão uma no cravo, outra na ferradura, incriminando e penalizando desagradáveis bebedeiras juvenis e públicas pelo disparar da Covid-19, mas admitindo em cerimónias solenes, pomposas e inúteis, comemorações, aglomerações de populismos, eventos que mais avante podem descambar em descalabro sanitário, geram inevitavelmente o descrédito que implica a muito curto prazo um relaxamento comportamental daqueles que por norma e regra, adrenalina, testosterona e exaltação hormonal – tudo junto e mais que já não sei, que já sou velha -, não são fáceis de confinar e que costumam ser adversos a recomendações e ralhetes de quem não tem de correr para o trabalho nos transportes públicos apinhados e racionados. 

A irresponsabilidade dos que destroem o milagre português relativo à Covid-19, tem clara ligação com a quebra de autoridade moral dos que dirigem administrativamente a máquina de resposta à pandemia. Ninguém consegue, por exemplo, ouvir Graça Freitas a considerar a UEFA e a FPF interlocutoras privilegiadas neste caso de saúde pública, sem ter de admitir a possibilidade de estarmos a um passinho de assistirmos à entrega da taça dos ventiladores esgotados aos profissionais de saúde premiados. Ninguém consegue, por exemplo, ouvir o destemor de Marta que sem pudor reporta a benignidade de multidões bem controladas desde que um ministro, ou um sindicato qualquer, ou umas orações distanciadas, ou um cruzeiro carregado de turistas, surjam em primeiro plano. Ninguém acredita já num Presidente que se refere ao heroísmo, a responsabilidade, à resiliência, à capacidade de sacrifício - e tudo o resto que de bom somos nós fartos - de um país que é ninho da melhor gente do mundo e um exemplo mundial de como se enfiam pessoas num autocarro suburbano esperando-se que resistem estoicamente - gente e autocarro - à doença e à ferrugem. 

O milagre português, assim como as nossas possibilidades mal avaliadas, são construções alheias. Não nos pertencem. São manipulações insidiosas com que nos fecham os olhos e nos tapam as bocas, provavelmente para que, irresponsáveis, não sejamos infectados pela verdade.