A obra foi-me entregue numa transcrição que cuidadosa, rigorosa e responsável, nos poupava os anacronismos da linguagem que nos fazia sempre tropeçar e tantas vezes perder o sentido e a paixão com que a folheávamos. Creio que esta cautela foi de Oliveira Martins, mas posso estar a cometer um erro, tendo em conta que esta versão se encontrava na estante encostada às obras deste autor e o tempo que passou sobre a biblioteca da minha adolescência.
Falo de Crónicas de Fernão Lopes.
Descobri aqui dentro algumas das mais extraordinárias
figuras que protagonizaram parte da História portuguesa, descritas com a
perícia e o talento de um génio literário capaz de insinuar a intriga, o
escuro, a perfídia e a traição com a mesma eficácia com que nos mostra o
heroísmo, a abnegação e o sentido de honra.
Foi através das Crónicas, que encontrei senhores e
súbditos, condenados e incensados, poder e servidão, guerra e não guerra,
doença e cura e homens e mulheres que fizeram pulsar uma época e uma época que
deles se serviu para adubar futuros.
Foi ali que me encontrei com uma das mulheres mais
interessantes da História portuguesa. Leonor, mulher e rainha barregã de D.
Fernando e que percebi que a ambição sem medida e a capacidade de nos movermos
sobre a superfície dos gumes das facas e a de invadir territórios marcados pelo
macho, exige muito mais do que uma beleza estonteante, uma inteligência
dominadora ou do que a habilidade consciente de manobrar o pensamento, a emoção
e o destino. Exige egoísmo. Um desmesurado e ofuscante egoísmo.
Foi ali que encontrei uma das minhas tiradas favoritas que ainda hoje não me canso de repetir e que descreve de forma genial a relação de Pedro o Cru, o primeiro de Portugal, com Afonso Madeira, o jovem de alaúde, por quem o rei nutria uma amizade inusual e mais que não se diz por ser verdade e que acaba castrado, castigo que infelizmente foi posto de parte, diria André Ventura -, por ter traído com uma mulher o que a frase insinua.
Não encontro na estante a versão que o meu avô me deu a ler, aquela que não me fez colidir com os anacronismos, mas acabo por sentir bem perto algumas das figuras que povoam as Crónicas. Para escolher o nome dos netos, privilégio que o meu avô chamou seu sem qualquer hipótese de contraditório, abria as páginas de Fernão Lopes e fazia com que as novas mulheres e os novos homens desta casa tomassem a graça que primeiro encontrasse.
Infelizmente, a página que abriu quando nasci, nomeava exclusivamente D. Fernando. O meu avô hesitou, abdicou, fechou o livro e decidiu-se pela graça da Princesa Santa, irmã de D. João II, porque era mais teimosa do que o poder do Rei.