8.2.22

A Gaffe de mantilha


Nas tardes vagarosas de frio sem chuva, íamos devagar, de braço dado devagar, pelo trilho da cisterna.

A minha avó cruzava a mantilha, protegendo o pescoço do assobio frágil da corrente de ar e recomendava cautela com os resfriados, enquanto retocava as ondas brancas do cabelo seguras por marés de tartaruga que a brisa breve descida das árvores ia maculando de brilhos e de invisíveis movimentos.
Caminhávamos pelo trilho estreito atapetado de ruivas e ferruginosas réstias da estação perdida, ladeadas por novelos de hortênsias bojudas que anilavam em agonias densas toldando o caminho de tombadas hastes dignas a morrer caladas. A minha avó pedia que as lancetassem para acabar de vez com a dor daquele fim. O Domingos suportava-lhes depois os corpos defuntos, trasladando-os para os cemitérios das jarras.

O caminho era longo, como que lavado em lágrimas.

Os dois teixos velhos retorcidos recitavam os sons da água. Só depois de sentirmos os olhos que deles pesavam sobre nós, avaliando o que perturbava a doçura do fio de água vigiado, é que autorizadas estávamos a ouvir o estalar do chão de folhas, o arrepio dos pássaros, o estremecimento das agulhas dos pinheiros mansos, o último voo dos últimos insectos e as patas das formigas a preparar a sonolência de rainhas.

O círculo de água abria-se então. De uma palidez imensa. Quieta. Com céus dentro. Céus enferrujados pelas sombras da ruiva paisagem moribunda que se refletia na brandura impávida da cisterna, óxido de prata.

Sentávamo-nos no banco de pedra e esperávamos.

Emudecíamos. Era infinito.

O tempo oscilava na cisterna. O fio de água afilado era o tempo que escorria sem ruído. Esperávamos a ténue teia das ondas do encontro do tempo com a pele polida da cisterna.

A minha avó pousava as mãos nas minhas.

- Agora vamos, minha querida. Já fizemos demasiado barulho.

Vou agora sozinha pelo trilho da cisterna.

Ladeada por novelos de hortênsias que o Domingos entregará à morte arroxeada presa às jarras.

Retoco o meu cabelo ruivo seguro pelas marés das folhas que tombaram e pouso as minhas mãos na memória das mãos da minha avó.

O tempo oscila na mantilha no pescoço de água da cisterna.

Agora vamos, avó. Ainda há tempo para o silêncio.