Quando dou comigo a pensar nas criançolas que fingem que nos governam, percebo que é impossível alterar a médio prazo o desconhecimento escandaloso do Pensamento e, em consequência, o estado demente em que mergulhou a mais básica noção de humanidade.
Sempre ouvi o meu avô dizer que é imprescindível o estudo de Sócrates, Aristóteles, Sófocles, Platão e de outros tantos pensadores cravados para sempre no arrojar do Tempo, para uma iniciação à Dúvida Humana, mas vejo apenas olhares displicentes, quase irónicos, como tal se tratasse de um qualquer brinquedo de plástico com que se recria o adro onde existe a possibilidade de um entretenimento irresponsável.
Esta ausência trágica deste conhecimento contribui para a solidificação de uma nova tirania, a mais ínvia, a mais sinistra e mais manipuladora de todas as tiranias já vividas.
A inexistência actual de qualquer ideologia, de qualquer bloco fluído de pensamento social e político, de qualquer projecto dinâmico de construção de ideias, de qualquer edifício estrutural baseado no Pensamento, é consequência evidente do estabelecimento perfeito e avassalador desta tenebrosa forma de domínio, desta subversão e aniquilação do Ideal. Deixou de existir, por ter deixado de fazer sentido, a expressão da voz comunista, socialista, anarquista ou outra qualquer com raiz histórica que se queira ouvir. São dinâmicas obsoletas e ridículas. A tirania foi construída através da alteração de noções básicas de sobrevivência, oferendo como engodo e factor pacificador uma ilusão rasca de democracia que acaba por se reduzir à máxima empobrecida e estafada, mas sempre cómoda e convenientemente convincente, o voto é uma arma.
Nenhum indivíduo é capaz de assumir que pode viver sem o que lhe é dito como imprescindível, usando os mecanismos de produção que tem ao alcance, que permitem a sobrevivência quase sem limites, e que as únicas armas eficazes, as únicas peças imprescindíveis, na construção, afirmação e desenvolvimento de um povo, são a História, a Cultura, o Saber e o Pensamento.
Somos programados para obedecer e calar sem perceber que o fazemos. Cegam-nos de modo a que não vislumbremos que o tirano é agora um conceito, uma noção abstracta, uma inexistência física, o mercado soberano, longínquo e vagamente inteligível para os eleitos, capaz de calcar, desfazer, esfacelar, esfolar e submeter sem os métodos tradicionais da opressão. Basta entranhar-se no vácuo e no vago criado na alma das gentes para albergar a obsessiva necessidade de possuir, o confronto inútil com o desejo de ter, a convicção de não sobrevivência se não conseguirmos, a promessa de realização se alcançarmos e a mais completa destruição da individualidade autónoma e auto-suficiente.
Estabeleceu-se o mais sofisticado método de escravidão de todos os tempos.
Esta perversão mental que traz consigo desvios comportamentais de ordem quase patológica, provoca uma ganância implacável e sem limite e uma total indiferença pelo explorado visto apenas como um maquinismo que alimenta, sem qualquer espécie de direitos, a voracidade do explorador que origina no espoliado o desejo de meter o dedo na bandeja que vai preenchendo e abastecendo, tentando lamber as migalhas que vão sobrando durante o festim ou provar do que lhe é mostrado como inevitabilidade social.
As reacções são pobres e dos pobres, como é previsível.
Os países desfeitos e os povos esmagados podem ocupar praças e ruas, morrer em barcos de borracha, pasmar de idiotismo perante as offshore ou eleger Trump e Bolsonaro. As manifestações embatem contra gigantescos muros de corrupção e a manipulação de todo o tipo de informação torna ineficaz o que poderia resultar. A vontade de ter, a constantemente desperta necessidade de possuir, o medo de morrer sem um tostão, a certeza de abandono daquilo e daquele que se tornou inútil ao sistema e mais um gigantesco amontoado de patacoadas difundidas ao serviço de uma entidade sem corpo, corroem a vontade de vontades renovadas e exigências básicas, transformando, dez minutos depois do seu início, uma manifestação num arraial de tapas e cerveja que não provoca dano na estabelecida e solidificada estrutura de poder.
Começa cedo esta espécie de injecção forçada de mediocridade e submissão humana. Convencem os petizes, mal se apercebem que os putos são capazes de os ouvir através do bloco televisivo respectivo, com uma miserável programação, onde o que se diz, se vê e ouve é uma descarada propaganda a este pântano, fornecendo-lhe o estatuto de inevitabilidade.
A alteração mental do indivíduo - dinâmica exclusiva de cada um de nós -, que passa necessariamente pela recuperação da capacidade de produção de ideias, poderá ser a única e derradeira opção.
E o entanto:
Acabo a pensar que a contradição é uma belíssima forma que encontramos para nos podermos envergonhar com uma certa dignidade daquilo que dissemos, mas que não fizemos.
Assumo que pode ser preocupante o facto de se começar a aliar a todos os medonhos e peçonhentos passos que o mundo vai inexoravelmente dando a caminho de uma situação de catástrofe social - que por norma desemboca numa carnificina -, à ideia da necessidade de se preencher o topo decisor de intelectuais, de homens provenientes de uma elite culta e cerebral. Embarcamos neste navio e esquecemo-me de olhar com atenção para o bilhete.
Em defesa desta tese, alguns governos europeus acolhem um manancial de jovens cérebros, não só para suprir as suas carências em determinadas áreas do saber e do conhecimento, mas com a sublimada convicção de que é necessário encher o próprio ninho também à custa dos ovos dos outros.
Soube, há algumas semanas, que na Universidade do Porto, dispensaram-se os Professores Assistentes de disciplinas cruciais, que aceitaram convites para leccionar ou fazer investigação no tão lambido lá fora e que deixaram como substitutos jovens inexperientes, acabados de formar, coleguinhas dos infelizes que se matricularam um ou dois anos depois. A Academia doadora passa a sofrer de debilidade, de anorexia, intelectual.
Critíco a miséria cultural dos líderes, acusando-os de tecnocracia galopante e de gabinetice burocrática aguda, que desconhecem os clássicos e que ignoram os ensinamentos dos mestres fundadores do Pensamento, sobretudo Humanista. Reivindico um governo de cérebros, de intelectuais, como contributo máximo e incontornável à reformulação do pensamento político e reestruturação social harmoniosa. Aponto - embora com cuidado -, de quando em vez os países nórdicos como exemplo de sucesso fundado na liderança do Saber e na promoção do desenvolvimento cultural, mas esqueço que este alastrar civilizacional da cultura tem de atingir toda a população, não se circunscrevendo à elite que governa.
Ouvem-se, também em Portugal, os cada vez mais irritados guinchos dos intelectuais que revelam a pobreza cultural dos governos, levantando, com os dedos enojados e nariz torcido, os panos nauseabundos que cobrem as eminências parvas, as evidências pardas, de Relvas por aparar, reivindicando uma hegemonia de intelectuais capaz de livrar a Europa de uma espécie de cortina de chumbo que separa aqueles que decidem do Pensamento.
Começo a cansar-me de me ouvir e de os ouvir.
Neste momento há, por entre tanta calamidade, gregos que compram mais barato alimentos fora de prazo e que entregam os filhos a organizações neo-nazis que tratam e cuidam dos petizes da forma habitual. Conhecemos a perícia com que estes sábios conhecedores de Nietzsche conseguem manipular o Pensamento, mas considera-se mais conveniente omitir o facto de ter sido, na Alemanha, a elite, a nata, o crème de la crème intelectual, os detentores máximos do Saber e do Conhecimento, a engendrar uma das maiores atrocidades da humanidade, com uma eficiência, um plano, uma eficácia e uma durabilidade horripilantes que, pese embora a idolatria entregue à Resistência, teve uma França, não só a do populacho, mas também a culta, como uma das suas principais aliadas, colaborando nesta chacina de uma forma que excedeu largamente as expectativas nazis.
Não é certo o êxito humanista da ascensão do Intelecto ao Poder, embora tal facto não exclua a necessidade de o ter presente.
A Arte, a Ciência, a Música, a Literatura, a Filosofia e mais do Saber e do Conhecimento que não se diz por não caber aqui, apesar de vitais ao exercício do Poder, não são sinónimos de Humanismo no Poder.
Assumo, bato com a mão no peito e canto mea culpa.
Esqueci-me que existe, para além da cultura, outras Verdades e que a culpa de as ignorarmos não está nas estrelas, mas em nós, como nos diz Shakespeare, esse patife.