![]() |
Jessye Norman |
Procurou silenciar a criança tocando-lhe com os dedos longos nos lábios.
- Ouve com muita atenção, minha querida. Esta é a obra de canto mais bela do mundo.
Sentou-se na poltrona de forma a não a ocupar completamente. As mãos agora nas minhas procuraram fazer com que eu, não mais do que dez anos, me aproximasse com suavidade do som que se ia erguendo e estilhaçando a placidez da tarde.
A sala era a sua preferida, a virada a Norte, mas pelos rasgões das janelas entrava a luminosidade das Primaveras incipientes e pacatas que nos provoca a enganosa sensação de que a luz, mesmo a mais frágil e evasiva, aquece a madeira do soalho e amorna a tessitura dos veludos das almas.
Os sons que ouvi vinham encadeados de forma cerrada, como se tivessem muros ou correntes dentro, como se estivessem presos uns nos outros e não houvesse espaço para desfazer as nuvens entre as notas, unidos por invisíveis dedos, por invisíveis palavras dentro das audíveis. Diferenciando-se, acabavam dolorosamente fundidos. Era nessa fusão, que surgia da colisão de nitidez que cada um possuía, que entravam no espaço do lamento animal. Já não eram voz humana. Tocavam a fronteira. Agonizavam dentro lamentos desumanos e gritos animais, mas com a beleza que nasce da transgressão e da subversão dos fonemas, da desobediência às regras e ao cuidado com que a linguagem verbo cuida em distinguir os sons.
Eram bichos e agonizavam nos lamentos de sons transgressores e subvertidos.
Ouvi até ao fim o canto mais belo do mundo e ao tentar mudar a luz da sala fria que trepava pelos móveis, alcançando a taça de prata sobre a mesa e abrasando as maçãs vermelhas, procurei fixar a angústia acidulada que enlaçava os objectos e os gemidos que trucidavam a placidez do instante.
- Não tentes. - Disse-me e correu os cortinados que de pesados rosnaram nas argolas, sem agonia, lanho ou subversão. - É O Lamento de Dido, em Dido e Eneias de Purcell. Nunca tentes domar a Tristeza atravessando-a com uma luz imperfeita. Deixa que a Tristeza se canse até que a luz que traz quebre por dentro.
Ontem ouvi, ainda às escuras depois de tantos anos, a obra de canto que ele dizia ser a mais bela do mundo e senti um orgulho imenso por concordar com o meu avô.