27.7.22

A Gaffe num pombal

Robert Collett - zoologista 

Há pombos por todo o lado. Há bandos deles nos centros das cidades que se transformam em manadas quando comem.
Não gosto de pombos. De olhos redondos e sinistros, com as cabeças que se inclinam num perfil quase ameaçador quando nos miram e com aquele arrulhar asmático medonho.

Vi uma vez um pombo a ser estraçalhado por uma gaivota. Cheguei a pensar que aquele massacre e o debater silencioso com que o animal era apunhalado sucessivamente, me faria solidária com a vítima, mas não. Fiquei a detestar também gaivotas.

Hoje vi, a caminho daqui, um homem numa praça rodeado de pombos. Tinha-os nos braços, nas mãos, nos ombros e um a debicar-lhe a cabeça. Não sei que idade tinha. Não sou boa a atribuir velhices. Estava na casa dos setenta. Dizer-se que se está na casa de qualquer idade, é razoável e minimiza o erro de avaliação das rugas.
O homem trazia nos bolsos pedaços de pão que esfarelava e oferecia. Os pombos cobriam-no e esvoaçavam largando um cheiro húmido e morno, nauseabundo.
O que me impressionou foi a seriedade com que tudo aquilo decorria. O homem olhava as pessoas que passavam com uma solenidade deslocada. Havia uma espécie de orgulho naquela exibição patética de poder. Um quase exibicionismo circense de domador de feras. Uma poética miserável colada à atitude demasiado séria e compenetrada do acto de dar migalhas a pombos numa praça repleta de gente indiferente.

Lembrei-me da gaivota que tinha visto a matar o pombo e percebi que naquele homem havia uma crueldade parecida. Ambos, homem e gaivota, exerciam o mais ínfimo dos poderes, a mais enviesada das tiranias. Tinham, nas mãos e no bico, a capacidade que os tornava sérios, de reter, controlar ou aniquilar o voo dos outros. Um alimentando-o, outra dele a alimentar-se.