24.11.22

A Gaffe axadrezada

Annie Leibovitz
As redes sociais - e universos afins - estão incendiadas com o encontro de xadrez de dois jogadores que entendem mais de damas.

Ao contrário de Portugal que tem bem definida e calendarizada a sua época de incêndios - Primavera, Verão, Época de Incêndios, Outono e Inverno -, as redes sociais e universos afins, permanecem em constante labareda.

Tudo é cavaco – e silvas? - para a eterna fogueira.
As imbecilidades de um Presidente tonto e histriónico; os erros do senhor da FIFA com o trogloditómetro a tocar extremos; as birras de plástico e de plásticas do menino de oiro no fim da carreira; a vereadora que desliza pela caridadezita; os cardeais sem norte; Carlos Costa a ligar ventoinhas quando já está frio; a ministra com o assessor de cueiros e as senhoras por licenciar, peritas e ministeriais especialistas em matéria de facto; o verde que quer respirar enquanto se levantam aviões para o Qatar, em rima solta e despreocupada; os acidentes da TAP na rota francesa dos BMW encomendados, e mais que não se diz por cheirar a esturro, deixam um lastro de lava por todo o scroll mais desprevenido.

A Gaffe fica siderada, bestificada, estarrecida, russa - oxigenada, vá! -, com a ardência das redes sociais perante estas normalidades.

A Gaffe já viu de tudo.


A Gaffe já viu Messi enfiado numas cuecas Dolce & Gabanna e pensou ser muitíssimo mais discreto se Messi as tivesse presas nos dentes.
A Gaffe compreende que o riso alarve possa ser acordado pela mais rasca das piadas mais primárias e com conotações sexuais evidentes, mas confessa que fica pasmada quando percebe que há gente que considera uma alegria alguém ter um namorado com bolas de metal, apesar de ler em todos os cantos e esquinas onde estaciona uma imprensa, mais ou menos suspeita e a rasar o grosseiro, que é uma alegria para as namoradas que estes potentados tenham as bolas de ouro

A Gaffe já viu Ronaldo de cuecas panorâmicas.

A Gaffe já viu Roanldo nu - embora com a pilinha tapada pela outrora, mas sempre oportuna, Shayk -, e já o viu de speedo tão apertado como o soutien de Catarina Furtado.

A Gaffe já viu Marchisio com as ditas quase transparentes - abençoado rapaz e abençoadas cuecas que o trazem dentro.

Ver cuecas perfeitas, ver a grande área, o meio campo, o canto, o travessão ou linha de fundo de um jogador internacional sem em simultâneo contribuir para a desflorestação do planeta Zuckerberg, é portanto uma questão de iluminação e de qualidade do grão e do ruído da fotografia e da grife na pose da Georgina.

A Gaffe confessa que de futebol as únicas coisinhas que entende e admira são as pernas e os abdominais dos jogadores. É-lhe portanto indiferente que seja o Ronaldo ou o Messi a ganhar o que quer que seja, ou que se tenham enfrentado - ou não - em cordial e risonha meditação no tabuleiro de Annie Leibovitz.

Há no entanto uma nuance nesta disputa de bolas que a Gaffe não gosta de deixar de fora.

A rivalidade, ou pacífica e supostamente civilizada inimizade, entre os dois jogadores em causa é essencial e é um erro da Louis Vuitton pensar que Leibovitz é concórdia certa. Em última análise, os inimigos são aqueles que buscam a harmonia. Podem matar para a obter, mas a demanda circunscreve-se a um estabelecer de tréguas, custe o que custar. Findam todas as quezílias quando um dos rivais sucumbe dominado. Há batalhas onde nunca existe empate. Um vence e decreta a ausência de conflito.
Há que ter de permanecer em estado de alerta ou de discordar de modo pleno, incessante e irreversível. Exige-se mesmo que haja discórdia em tempo útil, pois que tal é sempre capaz de despertar o ímpeto de crescer. A Ucrânia que o diga, se não estiver muito ocupada em se defender.

É provável que os inimigos, de acordo com a inteligentíssima teoria supra, são aqueles que, sem o percebermos, se tornam a água do poço do deserto que nos apaga a sede de viagem ou de dunas por cumprir temos de admitir que nos grandes desertos qualquer camelo é bonito. Messi, na frente de Ronaldo, não sendo um oásis parece uma água que refresca bastante.

A verdade, por muito que nos continue a surpreender, é que a cabeça do eterno rapazinho da Madeira parece ser uma imensa ilha desolada inundada sem cessar por uma chuva cerrada de notas e não altera o facto de parecer ser conveniente dizer o contrário, erguendo-se estátuas madeirenses que pretendem homenagear o seu génio futebolístico ao mesmo tempo que salientam os seus talentos de alcova.

O jogador é visto com magnificência. É o eterno menino pobre que conseguiu a auréola dos deuses à custa de trabalho árduo, repleto, abnegado, afincado, persistente, hercúleo. O rapazinho será sempre um rapazinho. Será para todo o sempre o humilde madeirense, bondoso, contido, benemérito, digno e consciente. A vítima estoica do ciúme dos rivais, o exemplo vivo de desportivismo olímpico. O moço que saiu da ilha para cumprir Portugal.
Qualquer grão de areia que se introduza nestes pressupostos origina reacções infectadas, acompanhadas de insultos e de acusações de falta de patriotismo. Há, no entanto, a necessidade de se referir que algumas destes grãos são uma delícia - a Gaffe não quer deixar passar em branco o que aconselha o crítico a esfregar os cotovelos numa parede de granito. É tão visual! É maravilhoso!
Esta inflexível postura dos prosélitos não tem em conta o facto de que, ao contrário do que se afirma, o dinheiro não transforma os homens. O dinheiro revela-os e Cristiano Ronaldo deixou há muito tempo de ser menino pobre.
Os povos adulam as criaturas que simbolizam o triunfo e, por muito efémero e diverso que este seja, acreditam piamente que - ao lado das razões que levam à glória -, existe a convicção intocável da eterna perfeição do idolatrado. Declaram a sua devoção a determinada criatura, não admitindo qualquer reparo ou crítica menos agradável, opinião discordante ou desavença que atinja o alvo dos seus extremosos cuidados e inabalável dedicação. São extremistas. O profeta está para o Islão terrorista como a deificada criatura está para os seus adoradores

Se quisermos mudar o campo onde se joga este equívoco, podemos sempre relembrar um ex-primeiro-ministro que foi preso e observar como ainda existe quem o clame inocente, vítima de cabalas tenebrosas, com amigos que são amigos do seu amigo, e não perceba que muito mais inquietante do que ter um ex-primeiro-ministro preso é ter o actual à rédea solta.

Cristiano Ronaldo surge como um imaculado milagre revelado aos povos e ignora-se que os pés dos deuses são de barro - para o bem e para o mal -, e que isso não se altera mesmo quando calçam Prada ou chuteiras CR7.

Não está em causa o talento do jogador unido a um trabalho infinito, mas a Gaffe teme que todo o treino a que Ronaldo se sujeita seja sempre da cabeça para baixo. No que diz respeito à parte que sobra, basta que decore uma ou outra frase inócua que lhe ensinam e a enfie seja onde for.

- O que está neste momento a ler, Cristiano Ronaldo?

- Eu costumo ler tudo o que contribui para eu ser o melhor do mundo. Posso não ser o melhor do mundo, mas acredito que sou o melhor do mundo. Se não sou eu a acreditar que sou o melhor do mundo, não sou o melhor do mundo. Posso não ser o melhor do mundo, mas acredito que sou. Vou continuar a trabalhar para ser o melhor do mundo.

- Qual a sua opinião acerca da Barbie, Cristiano Ronaldo?

- Eu não falo da minha vida pessoal. O que interessa é que acredito que sou o melhor do mundo. Se não sou eu a acreditar que sou o melhor do mundo, não sou o melhor do mundo. Posso não ser o melhor do mundo, mas acredito que sou. Vou continuar a trabalhar para ser o melhor do mundo.


A revelação dos gastos escandalosos de Ronaldo, a facilidade com que se lhe escorrega a cordialidade perante os admiradores, os seus pontapés no fair play durante um jogo que não lhe corre bem, o seu vagaroso derribamento, ou a sua aparente candura e réstia ressentida e ressequida de ingenuidade, não inflamam a Gaffe que se mostra completamente indiferente e não a atiram ao chão com a surpresa.

Ronaldo é um homem desmesuradamente rico e sem qualquer ambição à canonização - também por não saber o que significa -, e para além das suas outrora ditas geniais performances em campo, pouco mais se pode esperar do que comportamentos idênticos aos dos moçoilos mais rufias e mais fanfarrões de bairro suspeito.

Posto tudo isto, convém sublinhar que a Gaffe não sofre nenhuma reacção vagal nem lhe passa pela frente a ideia de, com estas faúlas, lançar fogo às redes sociais e universos afins, pois que está preocupada em apagá-lo noutros sítios e ansiosa por ver Marcelo Rebelo de Sousa, todo ele zangado, a despenhar-se pelos estádios catari, de tronco nu, envolto em chamas, de bandeira ucraniana em riste, aos gritos furibundos em nome e em defesa dos Direitos Humanos.

Diante destas desproporções, é fácil concluir que a Gaffe decididamente não é pirómana.