21.3.23

A Gaffe duriense

No Douro há dias em que atravessamos os corredores com a lentidão dos vermes.

Dias em que se vê por dentro. Não da alma - que desaparece afugentada e temerosa como bicho pequeno e ameaçado que procura esganiçado a mais funda lura para se imobilizar, para deixar passar o perigo -, mas por dentro do corpo.
Há dias em que se sente por dentro do corpo e o corpo em que se sente por dentro é como uma casa sem janelas. Muros, telhado e uma porta por onde apenas se entra. Sair não é possível até findar o sentir-se ou acabar o dia.

Nesses dias em que acontece este sentir, sabemo-nos alterados. Envelhecidos. Descobrimos dentro a maior desilusão, o maior dos abandonos, a maior das misérias.
Percebemo-nos idiotas. Entendemos a ausência, a solidão e toda a procissão de sentires magoados, como se abandono, desilusão, miséria e despovoado fossem órgãos iguais ao coração, cérebro, fígado.

Há dias em que atravessamos os corredores com a propositada lentidão dos cortejos fúnebres, para que os vermes tenham tempo de comer o nosso sentir lá dentro.

No Douro há também os dias em que a superfície dos lugares nos toca a pele.

As árvores desprendem os perfumes dos ramos. Descem os aromas pelos troncos como bichos cansados, roçam-nos a pele, farejam, e mergulham nas águas arrastando os líquenes e o musgo húmido para o fundo negro sem vista.
São como segredos.
Quebram devagar a película que nos envolve, como folha de cristal, como fina folha de cristal por sobre a pele.
Entendemos então a mais distante segurança que é entregue aos que escolheram o refúgio do rio onde o tempo esquálido flutua. Entendemos então os passos do silêncio. Esta espécie de felicidade em nada ter, porque se tem à tona da pele o imenso engano da quietude fria. Nada se move. Nada. Os dias são os dias já passados e nas madrugadas as árvores escondem o sussurrar do vento, o tilintar da chuva ou a luz que interrompe as frestas da penumbra, os rasgos de ruído pelas pedras.

Entendemos os dias do Douro porque os temos pousados na alma.