28.7.23

A Gaffe agulha


De acordo com alguns peritos na matéria, uma criança nasce com todas as potencialidades de se tornar matemático, arquitecto, músico, pintor, bailarino, físico atómico, escultor, escritor, investigador e toda a panóplia de variantes que quisemos, porque o cérebro contém todas as sinapses certas que favorecem todas as hipóteses. São os primeiros dias de vida que as vão destruindo, restando na maioria dos casos uma normalidade acabrunhante. A teoria sucumbiu rapidamente, embora reconheça que aplicada a mim tem algum fundamento, tendo em conta que o meu desenho, já de adulta, de um cão, foi encaixilhado pelo meu pai que achou maravilhoso ter retratado o extraterrestre que um dos provadores do vinho novo tinha avistado depois de ter permanecido demasiado tempo perto do lagar a fermentar. As ligações que me permitiriam aceder ao universo da expressão gráfica foram decepadas algures na minha mais tenra meninice.

As sinapses que ajudam uma mulher a usar tacões agulha como se tivesse com eles nascido, é uma das primeiras a partir. São raríssimas as que sobrevivem à adolescência titubeante e de plataforma de cortiça com tiras enroladas aos tornozelos e, na morte, levam consigo a consciência do deprimente que é parecer que sofremos de gravíssimos problemas ortopédicos ou de dolorosos achaques reumatismais quando nos atrevemos a dar um salto maior que a perna.
Os tacões, sobretudo os agulha, os que não suportam o suporte da cunha compensadora, devem ser usados apenas por mulheres que parecem ter sempre caminhado em bicos de pés, que são sempre uma prima ballerina assoluta eternamente pronta para iluminar o Lago dos Cisnes e que sabe que os gémeos - os músculos da barriguinha da perna e não os parvos dos Guedes -, não vão, jamais, sugerir que necessitam de soutien.

Uma das mais eficazes provas da elegância genética de uma mulher é a naturalidade com que usa tacões agulha.
Se o Everest parecer que foi encastrado invertido na base dos seus calcanhares e que a montanha chega sempre perfeita a qualquer Maomet, então a mulher conservou todas as sinapses que permitem escalar o que quer que seja, mesmo que a temperatura não lhe permita um decote Chanel vertiginoso.

É evidente que, perdidas estas ligações, uma mulher pode, mesmo assim, ousar encavalitar-se.
Com uma sorte extraordinária, um treino intensivo e aulas no Chapitô, pode eventualmente chegar a ficar apta, se existirem factores muito palpáveis, a parecer um belo rapagão em desequilíbrio.

O povo diz que os olhos também comem e, mesmo quando a carne é mal apresentada, somos mais benevolentes quando há bons legumes.