27.7.23

A Gaffe da mulherzinha


Há tempos que já lá vão, em blogue que já lá vai esquecido, recebi um recado de uma mulher banal que, numa entrada de mamute, se reportava à alegada homossexualidade do meu irmão. Nada de importante, quer para ele, quer para quem o rodeia, mesmo que a alusão espelhasse uma verdade, o que não é o caso.

A mulher era, fazia crer com insistência e bandeiras desfraldadas, uma inflamada defensora dos direitos de tudo o que se mexe - incluindo o sistema neurológico das plantas -, uma abnegada e inabalável paladina das diferenças, uma quixotesca matrona imbecil de utopias parolas, uma cuetisa de pechisbeque capaz de urdir trivialidades usando as rimas que encontrava em saldo.

O facto de me ter considerado uma infeliz que até tem um irmão gay, é extraordinário.

Habituamo-nos a espreitar pelo buraco das fechaduras precárias das redes sociais. Viciamo-nos nesse nauseabundo encharcar de pretensa vida alheia, acreditamos que detemos o poder medíocre - como todo o poder que é ilusório -, facultado pelo falseado conhecimento do que ao outro pertence, indignamo-nos quando nos falha a mesquinhice filtrada por likes, por twitters, ou por instagrams, e ficamos esfaimados, salivamos e esfregamos o rabo com as patas de trás, quando suspeitamos que de tudo sabemos, posto que é tudo o que ali está.

Somos patéticos consumidores de ilusionismos. Somos, em simultâneo, artistas de um circo onde a arena é o vácuo e o próprio piso onde periclitamos. De tal me convenci, mas estou ainda em processo de adaptação.

O desejado insulto da lamentável e iludida mulherzinha, que alia infelicidade a uma eventual ligação familiar com um homossexual, revela não só a sua incapacidade de discernir o que consubstancia as mais evidentes e as mais lógicas premissas que originam as mais simples e as mais comuns das felicidades, mas também nos dá como provado que se tentamos espreitar o que não se pode ver - valha-nos Saint-Exupéry -, acreditando que o intuído no circo é atestado de certezas e portanto passível de ser arremessado como uma pedra, denunciamos demasiadas vezes pedaços alarves da nossa verdadeira índole, deixando que os visados pela nossa torpe espreitadela olhem a descoberto o que queremos a todo o custo filtrar com cor-de-rosa.

Neste amontoado de blogues, por mais estranho que possa parecer, revelamo-nos naquilo em que acreditamos, somos o que espreitamos sem ninguém saber e somos sobretudo os ossitos que arremessamos à vida dos outros e que judiciamos ter recolhido durante as incursões que fazemos ao nada que vemos.

Somos como o emplastro. Espreitamo-nos, mas não nos vemos. Espreitamos e somos vistos.

 

Tetsu

A mulherzinha é minúscula e usa casacos de malhinha e saias de fazenda grossa e bugigangas nos dedos. Tem medalhinhas presas na lapela e brincos de pérolas falsas agarrados as orelhinhas pontiagudas.

Reza muito.

Tem olhinhos maldosos e insignificantes que se espetam nas costas de quem passa como alfinetes-de-ama, de dama da rua, e sorrisos mesquinhos e sinuosos de velha cínica ou de mentirosa. Tem mãos papudas, mas os nós dos dedos parecem berlindes. Os gatafunhos das rugas são traidores e mentem nos rabiscos que parecem mansos.

A mulherzinha pequenina, pequenina, pequenina, é uma assassina. A sua alma foi a vítima mais tenra quando a apanhou numa curva mole da mama descaída.

A mulherzinha pequenina, pequenina, pequenina,  odeia. Desde o primeiro instante em que nos vê. Desde o primeiro segundo. Baba-nos as mãos com sorrisos castos e lambe-nos os dedos com línguas de doçura, mas rói no escuro do palato as nossas vidas salivadas de rancor.

A mulherzinha pequenina, pequenina, pequenina, crava as gengivas nos tornozelos daqueles que, incautos, se atravessam nos caminhos podres que são dela e que ela defende rosnando mel envenenado.

A mulherzinha pequenina, pequenina, pequenina, espera chegar ao céu, inventado pelo marido que lhe fugiu, através de sacras estampas que cospe nas mãos dos que por ela passam. Oferece-nos santinhos para se proteger das tentações.

A mulherzinha pequenina, pequenina, pequenina, usa nos dias de chuva um tacho  na cabeça e vai gritar para a rua Heil Hitler!, sempre que soam umas botas de macho no pavimento da sala-de-estar-na-vida-sem-nada e só porque o homem que ressonava com ela na cama era a sombra do cadáver do ditador e marchava ao som das gaitas dos peitos de galinhas.

A mulherzinha pequenina, pequenina, pequenina, rouba-nos - mimética, copiona, imitadeira. Reclama pela calada da imagem, faz queixinha rancorosa e por isso fácil de se revelar perlo ranger dos dentes no silêncio, lamuriando-se depois, também ela pretensa vítima de crime, mas diz que aceita o fado pois que é abnenegada e vem da terra dura.

Há sempre chuva nos dias desta mulherzinha.

A moral da mulherzinha pequenina, pequenina, pequenina, é um quadro de revista e tem coxas flácidas. Tem mamas grandes onde se esconde a caspa da indignação de cinta elástica que amarfanha as banhas das ideais.

A moral da mulherzinha pequenina, pequenina, pequenina, que nos dá um santinho para nos proteger de toda a tentação, é uma gorda e empanturrada perua. Vai à cabeleireira e pede-lhe que lhe cuide das unhas com que rasga as costas ao sonhado amante, milhões de anos mais novo. Suplica que lhe contem novidades acerca da outra que na noite anterior se partiu contra um camião. Só para ter pena.

A moral da mulherzinha pequenina, pequenina, pequenina, velha macaquinha arrepiada, franze as sobrancelhas depiladas e torce o nariz com mil cuidados - o estuque na cara! - quando fala do mundo. Viúva da sua vida a tomar chá com morcegos e a olhar para nós, provocando-nos o vómito.

O rabo da moral da mulherzinha pequenina, pequenina, pequenina, que nos oferece santinhos, não sabe sequer onde desaba, que não vale sequer as pedras e os bancos onde tomba, mas que é sagrado e meticulosamente tapado, porque não sabe que os Nus são os raros e a Nudez é o lugar onde violentos nos amarfanhamos, fazemos amor e adormecemos.

A mulherzinha pequenina, pequenina, pequenina, pactuou com a morte e enquanto o tempo passa, faz o trabalho dela, no interior das vidas.

A morte enojada assiste.

A mulherzinha pequenina, pequenina, pequenina, não sabe, nem sonha, como se consegue matar e lacrar o que é medíocre e deixar depois que as reais linhagens de honras e de armas empunhem a bandeira desse abate.