1.8.23

A Gaffe doadora


Sinto sempre uma certa tristeza quando olho para aquilo que outrora foi acarinhado por mim como relíquia a conservar pela vida fora e que agora, embalado ou atado, é apenas importante porque o foi no passado.

Vou entregar à pequena biblioteca deste canto da vida os livros de histórias menores, com capa de couro, lombadas com letras douradas e rebuscadas, folhas carcomidas e cheiro a muito velho.

Pertenciam à minha gente. Gente que nunca poderia conhecer. Pessoas que morreram antes do meu avô ter nascido.
Há uma imensidão deles, colocados nos pesados armários do sótão, ou empilhados nas salas favoritas dos meus avós, exactamente onde os tinha guardado quando os descobri, já lá vão dez anos. Na altura, pensei que tinha encontrado, não um acervo valioso, mas belíssimos pedaços de memórias que se inscreviam nas margens das folhas pelos donos destes livros. Lembro-me das anotações a tinta, numa letra tombada e toda floreada, num livro de receitas de alguém que me parece ter dominado a cozinha em tempos idos.
Esse não vai.
Não vão também os que trazem pequenas anotações acerca de Voltaire, de Diderot, de Balzac e um ou outro de autores menores, mas que mereceram apontamentos extraordinários, mais outro que sublinha e comenta os soneto de Camões - tão mal amado e tão mal interpretado por Voltaire.

Isto de ter de escolher pedaços de memória é doloroso.

Sei que os livros, se ficarem, se vão deteriorar irreversivelmente. Custa-me entregar os volumes que foram importantes e acarinhados por alguém, um dia, no passado. Parece-me que os desrespeito, aos livros e aos antigos donos, mas há memórias que devemos embalar e levar connosco e outras que, por muito que lamentemos, devemos deixar fugir por ente os dedos.

Até nestas decisões derradeiras as bibliotecas são parecidas com a vida.