14.5.24

A Gaffe atraída


Os homens mais atraentes que conheço não desfilam - pavões inexpressivos -, nos tapetes do glamour, de brilho impávido nos olhos vestidos pelo deslumbre de uma griffe. Cruzam-se comigo em cada rua, banais, quotidianos, corriqueiros, cansados dos lugares onde procuram arrancar das pedras pedaços de vida e trazem nas mãos a nudez completa dos que trocam por sonhos o esplendor da glória.

São homens banais, heróis já quase feitos apenas de cansaços ou palavras.

Há homens que atravessam o tempo e se deixam atravessar por ele, sem piedade ou condescendência, mas sem macular a mais ínfima das partículas de que são compostos.
São, na sua maioria, homens de génio que rasgam os limites das impossibilidades quotidianas e refazem o universo, vertendo-o num copo com vinho que bebem no entardecer de uma esplanada qualquer, depois de terem restabelecido a ordem e a alma das coisas breves distorcidas pelos outros.
Há uma invulgar espécie de criaturas em que o tempo toca de modo feiticeiro e lhe entrega o incontestável poder de metamorfosear a inexorável conquista do passar da vida, na potente capacidade de nos proporcionar o fascínio das madeiras antigas que, rugosas e agrestes, repletas de atritos e de farpas, conseguem manter a esperança nos veios erodidos, e através dela, nos conceder o milagre de tocar nas arestas já tão gastas como palavras pela ruas.

Às vezes trazem peixes verdes nos olhos e acreditamos, perto deles, que todas as coisas são possíveis.

Há homens de papel.

Parecem atravessar as ruas e as praças com a mesma impunidade com que pisam areias movediças. A luz que os vem aveludar é coada e mansa, quase embaraçada e tímida por se quedar na perfeição rival. Deixam no espaço um perfume de frésias esmagadas com um travo amargo de madeira exótica e pisam o que é deles, apenas por chegarem.

Parecem atravessar as ruas e as praças como se atravessassem cortando corações.

Há homens que tropeçam nas pedras do caminho, iluminados por uma luz que finda e que renasce pela manhã, na mais banal das séries; que trazem os aromas dos lugares caseiros, de cães, de chuva, de areia arrasada pelo vento, de árvores de fruto, de sonhos triviais, de ilusões e choro, de risos imbecis, mas a saber pela vida.

Trazem um Poeta no passado dos corações e fazem-nos sentir que temos tudo para dar e que tudo neles nos pede água.
Atravessam as ruas e as praças, mas param sempre ao lado de um coração qualquer.

Existem homens que trazem no corpo os rastos mais felizes das histórias que viveram. Usam-nos para encanto nosso e com a dignidade silenciosa do inevitável. Só a tranquilidade de uma maturidade plena e consciente os faz encantadores da serpente fugidia da atenção de uma mulher. Apenas a sóbria capacidade de se ornamentarem com as cores da exuberância que lhes povoa a vida nos faz render aos seus majestáticos perfis de sábios e de poetas.

Há homens que não são maus. Não sabem sê-lo. Também não sabem ser bons. Existem e pronto.
Almas assim podem ter o condão de nos esfacelar os nervos, mas é impossível ver esses gigantes de olhos abertos, mudos e surdos, sem rezar baixinho pedindo a alguém para os salvar do mundo. São pesados colossos mais leves do que eu.
Mas há neste grupo, homens que se desfazem em estrelas minúsculas para que a luz não falte no espaço onde estamos.
Esses devem ficar perto de nós. Cada gesto nosso, ao lado dos seus, suga toda a força que trazem no corpo.
A vida também é isto: O uso matreiro de seres como eles para complemento de inúteis legendas.
Há credibilidade em grau bem maior quando nós falamos com um lobo aos pés.

Há homens que nos consomem.

Há homens cuja capacidade de sedução é equivalente à eficácia de um garfo a tentar espetar uma gota de mercúrio.
Ocupam-nos à revelia da nossa vontade e mesmo reconhecendo a toxicidade dos patifes somos incapazes de os substituir por uma qualquer panaceia transformada em jóia.
Esquecemos com demasiada frequência que deles dependemos apenas porque recusamos assumir que se nos matam com o fumo dos seus encantos sacanas, somos nós que a cada momento lhes avivamos a chama.

São como vícios.

De que são feitos os homens?

Os que nos querem e os que queremos realmente; aqueles que nos fazem indiferentes a qualquer libertação feminista, porque a deixam sem sentido, inútil e escusada; os que nos abraçam como se nos fizessem entrar em catedrais ou em cabanas onde as traves do tecto e do soalho são de madeira cortada, polida e cravada com a própria alma, que depois nos entregam para que a guardemos dentro do peito; os que nos trazem gargalhadas para casa, sonoras gargalhadas, trovejantes gargalhadas, e que não tremem quando trazem lágrimas; aqueles que nos dizem que não leram Pessoa, Eco, Proust ou Lobo Antunes, mas que nos desassossegam sempre que demoram, perdidos no tempo que buscam em nós, entrando tão depressa por essa noite escura, e que sabem de cor, de coração, os nomes de todas as rosas; os que dão nome aos nossos cães e atravessam temporais para os fazer correr atrás da chuva; os que não falam de amor, porque nos deixam acabar todas as frases; aqueles que nos abrigam quando há escuro e monstros dentro dos armários e se deixam recolher nos nossos braços depois do medo que sentem com um ranger de portas carcomidas.

Os que sabem que é a terra, a água e eu as três únicas claridades que conhecem.

De que são feitos os homens que nos amam?

Foto - Richard Prince, 1999