15.5.24

A Gaffe num sopro


Quando a Primavera tem raiz, na hora parda que alastra a cor acidulada reflectida nos espelhos da água da cisterna mais pequena, na face Norte da casa, no lugar mais frio, nasce uma brisa que sentimos quase verde. Desce as escadas de pedra e percorre todo o labirinto esguedelhado do jardim, entra pelas portas e janelas, corre corredores, afaga os móveis e as louças, sacode a poeira breve dos tapetes, confunde a ordem dos ponteiros dos relógios, despenteia jarras, inclina quadros na parede, desfaz a simetria das cortinas, obriga as mulheres a compor os lenços que usam traçados no peito, desarranja todos os recantos e canteiros, para depois voltar ao lugar onde nasceu, no lado Norte da casa, perto da cisterna mais pequena, e desaparecer por entre a imperceptível ondulação da água.

Dizem os homens que não é a brisa sorrateira e branda a nascer ali, que não é o vento a estender um braço de sono e a recolhê-lo depois de o espreguiçar.

Dizem as mulheres que todas as Primavera, em maio que chega, vem do fim da água um anjo condenado por se atrever a amar aquela que guardava e que em brando desespero procura o que por tanto desejar deixou desamparado.

Ao fim da tarde, depois, volta a morrer, porque se perde constantemente a vida quando sabemos que o nosso amor, de tanto, desnuda e aniquila os que desmesuradamente nós amamos.