24.6.24

A Gaffe atingida


Foi ao sair, e eu saio sempre como quem foge da chuva, que me apercebi num vislumbre que tinha espetados nas costas os olhos do homem. Duas agulhas pardas e pequenas, disparadas certeiras. Atravessava a rua com eles enterrados na carne, quase perfurando uma omoplata, mas não sentia dor alguma. É evidente que os dardos se fixariam ali, a necrosar, se não tivesse visto pelo canto dos olhos as órbitas do homem vazias e escuras, tenebrosamente túneis. Com a mão tentei atingir os pontos que começavam a causar ardor. É difícil chegar com os dedos ao vértice inferior da omoplata se o caminho for o da curva dos ombros, por isso foi depois de gesticular de modo confuso durante algum tempo que percebi que o problema se resolveria se fizesse o percurso contrário, ou seja, dobrar o braço na esquina dos rins e ir tacteando até encontrar o bico que desesperava. Quando toquei as agulhas compreendi que não seria fácil arrancá-las. Apenas os nervos ópticos se deixavam sentir, como vermes minúsculos, fora da minha carne. Os globos oculares, pelo contrário, haviam sido engolidos completamente. Os olhos do homem tinham sido disparados para que o meu corpo, mesmo invisível, não abrisse ferida, de modo a que tudo se assemelhasse ao fundir de duas labaredas com num incêndio. Por baixo da blusa as minhas unhas rasparam as duas excrescências até as sentir possíveis de prender. Depois as pinças puxaram. Muito mais forte do que a recusa em acreditar nos dois ovinhos, saltando no chão directos ao ninho, foi a surpresa de me ver irrepreensivelmente controlada durante a operação.

Há homens que deviam nascer sem olhos.

Imagem - Cecilia Paredes