27.6.24

A Gaffe de pés trocados

Depois de um dia assustador e repleto de canseiras, a Gaffe gosta de planar pelas avenidas, beberricar um chá na mesa de um café acolhedor, ler devagar os seus favoritos e fazer saltitar o olhar pelas minúsculas partículas de vida que esvoaçam.
Nesta irrisória aventura encontra algumas vezes motivos de perplexidade.
Ontem foi um dia desses.

A rapariga que passou não deixava de ser elegante. Esguia e sinuosa, poderia, num primeiro olhar, parecer digna de figurar no catálogo de achados que a Gaffe vai preenchendo vagamente.
Acontece que, no doce balanço a caminho do mar, a pobre colocava o pé esquerdo no lugar exacto do pé direito e, o direito, colocava-o no espaço onde deveria situar-se o esquerdo.
A Gaffe estranhou o caminhar. Suspeitou de gravíssimos problemas ortopédicos ou de uma espécie nova de dislexia, até perceber que a moçoila marchava como tinha visto os modelos nos desfiles onde os ossos se contorcem até ao limite do desequilíbrio.

Cabra como é - assume-se -, a Gaffe esperou vê-la estatelar-se na calçada, embrulhando as extremidades trocadas e tropeçando nos seus próprios passos. A queda transformar-se-ia numa aprendizagem louvável, num saber adquirido e, placidamente, teria mais uma vez de se reconhecer que a construção da sabedoria dói que se farta.

No entanto, para grande desolação, a rapariga passou ilesa. Pés trocados e ancas contorcidas a balançar periclitantes.

Minhas queridas, este enviesado, oblíquo, arrevesado, estrábico e torto caminhar pertence a um universo distinto do das ruas da cidade. O quotidiano mais banal não se compadece com ilusórias passadas sem luz e sem banda sonora. Se trocamos os pés, imitando desconchavadas o que vemos na Fashion TV, enfiadas no aconchego do lar de pantufas peludas e bolacha Maria em riste, arriscamo-nos a parecer dementes, alcoólicas, saídas de um SPA de subúrbio ou da fisioterapia que não corre muito bem.

Estes andantes pormenores exigem treino e paciência. Exigem o charme quase instintivo de uma maturidade segura. Obrigam a um cuidadoso repensar de imagem total e raramente aguentam umas socas com plataforma de cortiça e tiras a trepar pelos calcanhares.

Minhas caras, a Gaffe levou dez anos a aprender a andar comme il faut! Demorou mais de uma década a descobrir como cruzar as pernas de modo confortável e perfeito, sem se levantar trôpega e com elas adormecidas - e levou o dobro do tempo a reconhecer que não é nada modesta.

Uma mulher deve caminhar como se tivesse dez rapagões a segui-la com os olhos e, sobretudo, tentando não tropeçar nos calcanhares.

Os rapazes não passam incólumes por este crivo.
Não ousem, de perfil patético, despir o casaco e atirar o pobre para cima do ombro, com a mão livre no bolso e sorriso de quem foi, na véspera, para a cama com a Angelina Jolie - ou com o Brad Pitt. Não é credível e deixa-nos com uma desagradável e embaraçosa vontade de rir a roer-nos as entranhas.

Tenham juízo e deixem o cor-de-rosa das imagens que decalcam na gaveta das ceroulas, ou na prateleira dos romances da Margarida Rebelo Pinto, sim?