27.6.24

A Gaffe num mergulho


As constantes oscilações de humor desta rapariga são vastas vezes da responsabilidade da sua incómoda capacidade de observação.
A Gaffe observa o palpitar de tudo, escuta os batimentos dos corações dos objectos, perscruta com afinco o respirar da vida, cata com minúcia o pelo daquilo que acontece e pesquisa à procura de faíscas escondidas nas tempestades e nas bonanças que ao seu lado pairam.

A observação prolongada, constante e obsessiva da vida, fornece ao observador a capacidade imediata e quase involuntária de descobrir em quase tudo pequenas migalhas, diminutas pepitas de ouro, pedacinhos de chumbo ou fragmentos de névoa, que, para os distraídos, não são mais do que absolutamente nada, mas que adquirem sob as lentes do nosso microscópio interior, valor imenso e importância clara e primordial.
Desses pequeninos encontros se vão erguendo histórias internas impossíveis de separar da nossa alma que se estrutura e constrói a cada passo e se reorganiza a cada momento com réstias daquilo que nos é dado olhar.
Quando a observação é extrema e somos dela dependentes mórbidos ou reincidentes, inveterados viciados, veteranos dessa guerra ou dessa paz, humildes servidores ou donos seguros do olhar lançado sobre as vidas, acabamos empurrados e levados, impulsionados e envolvidos, puxados e amarrotados, dominados ou a dominar, mesmo sem o querer, o observado. Somos parte integrante do que olhamos, quer quando o observado fica a milhares de vidas longe daquela que é a nossa, quer quando o que vemos está nas nossas mãos.

Inevitável é esta estranha forma de globalizar a alma e que ninguém pergunte por quem os sinos dobram. Todos os sinos dobram quando a vida é tida por inteiro, quando em nós existem e ficam retidos os traços da vida dos outros, quando em nós o olhar é muito mais que o ver.

Todas as viagens são pequenas colisões com universos distintos do nosso e todas nos provocam o embate com o Outro, o mergulho no Outro.
Olhamos e somos olhados e é nesta simbiose que se adquire a capacidade de operar ou favorecer o crescimento positivo do que somos.
Olhar o Outro e deixar que o Outro nos olhe, consubstancia o âmago da harmonia mais simples e a simplicidade é factor essencial para a evolução sustentada e sustentável dos nossos mais interiores e mais íntimos edifícios.

Se estas visões, estas trocas externas e internas de olhares, estes mergulhos bilaterais, se fizerem a partir de uma partilha consensual de uma viagem, o resultado torna-se perene, porque deixa paisagens em retinas díspares abalroadas pela mais pacífica das cumplicidades.

Posto isto, façam um favor: não usem lentes baças quando nos abraçarem nos lugares tocados pelos olhos dos nossos corações.

Assim, a Gaffe oscila e deambula pelas emoções sem medo ou desgraça. Sabe que o baloiço é empurrado sempre pelas diversas mãos do demasiado amado sentir do mundo a sentir.

O resto é apenas a Gaffe de asas abertas.