Porque hoje é o dia do aniversário dele
Tenho uma calamandrina variegada e os meus vizinhos uma visita.
Em princípio os dois factos não
estão relacionados, mas um Domingo pingoso pode alterar muito estas coisas.
A calamandrina foi-me oferecida e
é pequenina, tem frutinhos lindos, rondondinhos e cor-de-laranja. Está na
varanda a apanhar chuva num vasinho fofinho que decidi ser demasiado acanhado.
A manhã promete umas abertas,
tenho um saquinho de terra, uma pazinha verde alface que sobrou do conjuntinho
de praia da sobrinha, um vasinho maior e muito pouquinho para fazer.
Enfio umas meias de lã, às riscas amarelas, roxas e verdes;
encaixo dentro as calças de pijama cor-de-rosa com bolinhas azuis; visto o
roupão amarelo limão, cardado, com um capuz que tem na ponta num pompom roxo;
traço o chacecol Burberry porque tenho sempre frio no pescoço; calço as
pantufas com o Mickey num lado e a Minnie no outro, com sola de borracha para
não escorregar; calço as luvas de cozinha verdes para rivalizar com a Lady Gaga e
de pá em punho arrisco a jardinagem. Estou toda compenetrada, de joelhos no Expresso, a
tentar soltar do vaso a plantinha depois de ter feito o ninho novo no que tenho
ao lado, quando ouço vinda dos confins da varanda do lado uma voz tonitruante:
- Só a deve mudar quando ela tiver o dobro do tamanho do
vaso.
Depois de quase me desfazer com o susto, tento
recompor-me o melhor que permite o meu estado de catástrofe visual.
Levanto-me num instante e bato com os olhos na visita dos
vizinhos. Na varanda do lado tenho um trintão alto e espadaúdo, de
Levi’s de um azul perfeito e, para mal dos meus pecados, muito apertado, de
blusa de malha grossa castanha de gola alta, botas consistentes de couro
envelhecido e um ar australiano - daqueles que cuidam do gado nos locais onde
ele existe na Austrália, muitos bois e muitos cavalos e muitos toiros bravos.
Olhos pretos, pestanudos, cor morena, negra madeixa ao vento, boina madura
ao lado, sorriso de se morrer por mais, queixo quadrado por escanhoar,
peitorais ao nível dos meus olhos e mãos grandes com aspecto calejado.
Para minha grande humilhação, estou da cabeça aos pés uma
miséria. Nem o meu cabelo se porta em condições. Pareço, embora sem bigode, o
Einstein ruivo, com caracóis a tapar os olhos. Nem o cachecol Burberry que
podia vir em meu auxílio está de feição, porque lhe dei um nó e atirei as
pontas para as costas para que não interferissem com os meus afazeres. Jurei
naquele instante que mal me refizesse do ataque cardíaco que sentia estar a
acontecer, atearia fogo àquelas pantufas imbecis que dos meus pés olhavam para
o homem com quatro olhos esbugalhados.
- Acredite. Eu entendo disso. Sou veterinário, mas a agronomia interessa-me
muito - saracuteou.
Veterinário. O homem é veterinário, mas a hortaliça
interessa-o. Cultiva plantas, seca-as e faz chá depois. Tem pomares e
exporta vegetais para toda a Europa. Tem imensas cabeças de gado e, espero eu, o
resto também, porque só as cabeças é assustador. Levanta-se todos os dias às 6
da manhã para ajudar a pensar os animais. Vive longe dos distúrbios
urbanos e é feliz no meio das vacas - enfim, ninguém é perfeito - e eu ali,
mascarada de tarada, a tentar envasar uma calamandrina que não tem o dobro do
vaso de origem.
Uma vergonha!
Foi então que desejei ter uma rolha enfiada na boca. Abro
aquilo a que se convencionou chamar matraca e esplendorosamente desabo:
- Desculpe! Pensei que estava sozinha. Se soubesse que aí
estava tinha vestido uma lingerie em condições.
Estou pronta a morrer depois disto.
Feita um trambolho esguedelhado, de pá verde, alface
agarrada às luvas de borracha, com a Minnie e o Mickey enfiado nos pés, fico à
espera que o homem me cuspa.
- É a mulher mais encantadora vi em toda a minha vida.
Caíram-me os brasões no vaso da calamandrina.
Valha-me Deus! O homem convidou-me para jantar e não sei se
as pantufas fazem pandant com as pérolas.
Gaffe - Porto, 2017