31.10.21

A Gaffe embruxada


A Gaffe - uma cabeça no ar! - não se deu conta da manigância da data de hoje e esqueceu por completo que a sua reserva de rebuçados está há muito esgotada.

Desprevenida, mas sempre abnegada e com clara propensão para o martírio, vai com certeza ver-se obrigada a ser ela a guloseima.

30.10.21

A Gaffe muito feminista


Não é necessário, rapazes, que acordem de madrugada, tomem um duche silencioso, escovem os dentes, se perfumem, se escanhoem, troquem de pijama e se coloquem em pose, deitados ao nosso lado, para que tenhamos um acordar principesco.

Acreditem, meninos, que aguentamos despertar ao som do Krakatoa ou dos Moon Spell; suportamos o velho vizinho do andar de baixo que de pantufas, pijama de flanela e roupão felpudo, nos toca à campainha preocupado com a possibilidade de nos termos esquecido de fechar as torneiras do WC, desconhecendo por completo a força com que usais a sanita; perdoamos a encharcada toalha do vosso banho que enrolais à cinta, mesmo reconhecendo que o paninho com que limpamos os óculos taparia com a mesma eficácia o que cobris fanfarrões; aceitamos a vossa biblioteca com o Kama Sutra ilustrado e o outro do Tio Patinhas, sabendo de antemão que o primeiro vos causa problemas ortopédicos e que do segundo não entendeis o argumento; abdicamos da máscara de oxigénio quando nos sussurrais o brejeiro beijito matinal; aguentamos estoicas a panóplia de roupa atirada para os cantos à espera de ganhar raiz, folhas, flores e frutificar oferendo-vos as peças que substituiriam o que finalmente foi a vossa escolha; compreendemos até os vossos boxers com tubarões estampados.

Nós acordamos é dispostas a ver-vos sapos.

O que vos faz perder a coroa, meus queridos, é a crença na Igualdade dos sexos. Nada é mais prejudicial do que confiar na disponibilidade de uma rapariga para abdicar dos seus privilégios femininos por tão pouca coisa. Um mulher que quer ter o mesmo que um homem, não tem ambição.

Somos raparigas pragmáticas. Muitíssimo menos românticas do que aquilo que sonhais. Não reivindicamos nada a não ser o que nos é palpável e que vos foi entregue como apenso à vossa condição de macho. O lugar de direcção, a chefia do departamento, a liderança dos exércitos, a Lei, a Ordem, o Progresso e todas essas maçadas que inventais e dominais pensando que vos vão aumentar aquilo que podeis cobrir com o paninho dos óculos.

O que vos transforma em sapos, rapazes, é o acreditar que vos vamos engolir se nos brindardes com aquilo a que chamais tratamento igualitário, esquecendo que o vosso trabalho se tornou duplo, porque nos tereis de enfrentar de modo feroz à mesa das mais altas negociações e, depois de aceitardes as derrotas, tereis de nos continuar a segurar o guarda-chuva e a abrir a porta do automóvel.

Não convém esquecer, rapazes, que não há histórias de sapos femininos.

Por muito que façamos, continuaremos princesas que não trocam os seus reinos conquistados por cavalgadura alguma e que sabem que se o príncipe afinal é um batráquio, existe a guarda de honra obediente para segurar o leque do nosso acordar.


29.10.21

A Gaffe com cinco sentidos


  I 

Tacteio a fina camada de pó no parapeito da janela. Tem a consistência do corpo despido no meio da cama, adormecido, ignorante, num abandono de poeira. Os dedos traçam na superfície da madeira duas estradas finas, convergentes, como riscaram na noite anterior ao pó do parapeito da janela, a minuciosa caminhada na pele do homem despido. Toco nos vidros com os dedos e deixo o rasto do remorso de não saber o nome das coisas adormecidas que as minhas mãos foram tocando, tacteando, fazendo arder as palmas de encontro a pele. Lá fora, uma mulher acaricia um cão.

II 

Vejo a fina camada de poeira no parapeito do peito do homem. Olho o adormecido corpo que foi visto na noite anterior à poeira pousada nos meus dedos. No fundo dos olhos fechados do homem que dorme tenho a minha pele gravada como tatuagem ou como um lírio a rebentar de carne. Olhar um corpo nu, por descobrir o interior, cegueira para mim, faz do remorso, ou da tristeza, o olhar parado das varandas. O parapeito das janelas onde se vê o pó pousado à espera dos meus dedos. Lá fora, um cão olha para o mar e deixa que a dona o veja a olhar.

III

Ouço os meus dedos riscar o parapeito da janela. Ouço o respirar do homem que está nu na minha cama e desconheço as noites anteriores em que o respirar não foi comigo. Ouço na memória os gemidos da pele e o ruído do entrecruzar de corpos e a poeira a tombar na pele do parapeito da janela com o barulho das pedras lançadas ao mar pela mulher que ouve o cão ladrar. A surdez do homem a dormir na cama é como labareda de tristeza. Incendeia o mundo.

IV

O cheiro da pele do homem mistura-se com o mar que entra como bicho insidioso pelas frestas. Os vidros não impedem que ele chegue, como nada impediu o meu corpo de adormecer aquela nudez na minha cama. Mistura-se o mar com os lençóis e há poeira no dormir do aroma da pele suada que se mistura ao que vem do mar. O quarto cheira a corpos e a ondas e um peixe atravessa os vidros misturando o que lá fora passa e que o cá dentro está parado. A manhã da mulher com o cão cheira a maresia e a suor. O cão ergue o focinho e fareja o espaço e eu ergo a cabeça e sorvo os cheiros do corpo e do pesar, ambos suados.

V

O sabor dos dedos levados à boca com o pó do parapeito da janela é igual ao da carne suada que me raspou os lábios na noite anterior à do cão que lambe as mãos à dona, lá fora, onde a avenida acaba no palato das ondas. O travo da tristeza que me engole mal amanhece, esmaga-me na luz que é o chão onde mordi as ervas e os lírios macerados no corpo daquele homem no meu leito, feito almofariz, o corpo, o leito, de pedra ou de marfim ou só de jade. A manhã traz na boca a memória da carne mastigada e das gotas de água já bebida.

 

E eu adormeço.


26.10.21

A Gaffe muda

Mario de Biasi

Há uma hora em que não ouço a minha Avenida.

Próxima do alvorecer, a hora do deserto interrompe as ruas e passa como um vadio com o silêncio nos bolsos. Nessa hora, o mar não tem queixume e dele apenas sinto as mudas ondulações da desbotada lua.É a hora das palavras por dizer. Chegam nos bolsos do vadio que passa, junto aos silêncios, e ficam presas nos frouxos candeeiros como frutos ou pombas ou pedaços de gente bêbada, escura, que adormece.

Invento o meu ruído, nessa hora. O que me faz ouvir o que nas outras horas emudece. Abro a porta e debruço-me nos bolsos dos vadios, dos que usam o silêncio como frutos ou pombas ou travos de gente pendurada nos vagos candeeiros e deixo que as palavras sigam deslumbradas como se tivessem nascido há pouco tempo e pasmadas se infiltrassem nos rochedos.

A minha hora muda é o silêncio dentro dos vadios e uma mulher com cabelos soltos, nua, morta sobre as ondas.
 

19.10.21

A Gaffe vindimadora


Foram dias longos e telúricos.

Para uma rapariga que até há bem pouco tempo pensava que se pisavam as uvas com os pés, de pernas nuas e de braços dados, apenas para tonificar os músculos, é sempre incómodo. Fica-se com a sensação de futilidade, frivolidade, completa ignorância e inutilidade que nos assarapanta sempre que nos encontramos com o Douro.

Creio que sou demasiado urbana e poluída para me embrenhar nas andanças da terra. Evidentemente que a minha aversão à paisagem que não inclua pelo menos um elemento humano de tronco nu e pernas de aço, é completamente ignorada.
Passei longos dias a olhar para os poderosos e graníticos homens que de esguelha me observavam com ar condescendente, guiando tractores rancorosos, e as noites a passear pelos corredores de uma casa assombrada onde até os retratos são pesados.

Para agravar todo este cenário, reconheço que no Douro o meu pobre glamour não passa de uma asneirita tonta de uma miúda com peneiras.


Só espero que esta seja a altura de mandar os rapazes arrancar as silvas (?) dos trilhos (?) das ramadas que consigo ver do meu quarto. Gosto de braços arranhados e de mãos picadas, de troncos vergados e músculos retesados, de camisas apertadas e de calças seguras por um baraço ou por cintos a cheirar a couro velho e dos sorrisos tímidos dos mais jovens faunos.

Seja! Reconheço:
Esta terra tem os seus encantos.

A Gaffe do feitiço


Era uma mulher jovem, de busto anafado, apertado em camisolas justas de malha com borbotos. Camisolas coloridas. Verdes bandeira, vermelhas sanguíneas, amarelas solares, azuis de mar de Verão. Camisolas a contradizer o sorriso mostarda - sinistro por não se ver nos olhos -, com que barrava o caminho quando lhe perguntavam se estava à espera de vez.

Via-a todas as tardes sentada de saia travada a compor os joelhos descobertos, de camisola berrante a apertar o busto roliço, a sorrir mostarda quando lhe perguntavam se esperava a vez.
Sempre calada. Sempre à espreita.

Vinha com uma criança que sentava durante três horas ao seu lado. Uma menina de pouco mais de quatro anos de camisolas tristes, sem bandeiras e sem sóis desbravados. Camisolas só com borbotos.
Durante três horas as duas sentadas, uma a fazer os olhos sorrir em desafio imbecil e a outra a desafiar a imbecilidade de ficar ali a entristecer, esperavam o homem.

O marido, requalificado pelo governo aos cinquenta anos, ficava-se durante as três horas que durava a tarde atrás do balcão a requalificar-se. Era um homem magro, alto, curvo como a piedade, de óculos que a desilusão embaciava e tornava redondos como é de esperar das desilusões que nos ajudam a ver.

Pedi-lhe um dia para evitar que a mulher o esperasse ali, com a filha triste que enrolava nas horas os desenganos precoces. Disse-me que tentou. Não conseguiu. A mulher e a filha continuaram a vir todas as tardes. Sentavam-se e esperavam que o homem se requalificasse.

Proibi.

Dias depois do meu decreto irrevogável que as impedia de esperar, encontrei em cima do capot do meu carro um pão seco, empedernido, sujo e com uma mecha de cabelos nauseabundos espetados naquela pedra de centeio. Ao tentar com uma folha de papel levar o nojo ao lixo – ai, menina que é bruxedo! -, vi, escondidas, a mulher de camisola berrante com borbotos com a criança agarrada à saia travada compostinha nos joelhos.

Era a criança que sorria só com a boca.

18.10.21

A Gaffe terrorista

Giovanni Paolo Cavagna

Toda irritada, a amiga da Gaffe - enquanto as duas vão mordiscando uma porcaria comprada no café que agora vende p'ra fora munto barato -, pernas cruzadas e sapato a dar-a-dar, dá conta da aversão que tem aos homens peludos quando por elas passa num doce balanço a caminho do bar, um macho alpha, gingão e marialva, de jeans e camisa aberta por onde se avista a Amazónia. Negra Amazónia de mistérios densos.

- Aquilo tem bichos dentro e a gente não sabe - avisa muito preocupada.

A Gaffe não pode solidarizar-se. Nunca apreciou homens que se depilam até à total humilhação do Ken e não entende o actual culto masculino por esteticistas fanáticas, psicopatas e radicais.

- Tens de concordar comigo que não é agradável andar à procura do homem no meio daquela mata, correndo o risco de sermos engolidas - pausa meditativa e acrescenta perplexa - lembro-me sempre de areias movediças, nunca soube porquê.

A Gaffe tem de concordar num pequeno pormenor. Um homem que decide não se depilar, tem de ter particular cuidado com as suas zonas menos públicas e mais púbicas. É evidente que a piloca não pode parecer, nos seus momentos mais entusiasmados, o Pinóquio que se juntou aos Talibãs.

17.10.21

A Gaffe escreve ao Senhor Doutor Oliveira Salazar

Henrik Spranz

Queridíssimo António,

Permita que o trate desta forma. Sei que não se ofenderá, ou sequer ficará melindrado, considerando o seu carinho por um allure francês - que arrasto numa costela - que sempre foi bem-vindo em Santo António da Barra.

Autorize que o congratule. O menino vai fazendo caminho, caminhando quase impercetível pelas brisas marítimas deste seu país tão pequenino.
É amoroso observar o seu Portugal a florir agora, com a lentidão exigida, no exacto canteiro onde o deixou um dia e o seu povo, o seu humilde povo, a regressar devagar e sem atrito àquele pedaço de terra que ia morrendo consigo à cabeceira.
Ouso pedir-lhe, meu querido António, que - pese embora o mal que lhe fizeram conspurcando -lhe a memória e a bonomia com que sempre olha o estado da Nação, sobretudo agora sentado lá no alto, na cadeira de Pedro, em princípio a mais segura -, tome consciência dos erros que em vida pia cometeu.

O menino, meu dulcíssimo António, entendeu mal o seu povo, ou seja, entendeu mal os pobres. É evidente que uma pessoa de bem por muito que queira colaborar com a Jonet, não pode saber de que se alimenta o populacho, mas o seu cargo exigia - peço-lhe perdão, mas tenho de o dizer -, que entendesse a inutilidade da repressão que alegam ter exercido sobre os supostamente esfomeados.

O menino deixou escapar por completo esta democracia!

O meu querido, imperdoavelmente, não percebeu que a polícia política, o aljube, a beatice, a tortura, a censura, a perseguição, o exílio, o assassínio, o peculato, a extorsão, o nepotismo e todas essas tontices desagradáveis que maldosamente afirmam ter permitido, apoiado e mesmo praticado no aconchego do lar, não são coisas que se façam ao abrigo de um pretenso poder sem escrutínio popular.

Dá sempre para o torto.

É evidente que é sempre feio andar a matar pessoas ou até a algemar e encarcerar contos e ditos ou a torturar gente que não sabe estar, mas, meu querido António, as restantes podem perfeitamente coexistir com outros modos de se governar que não o pesadíssimo ditatorial.

O menino devia ter viajado mais.

O menino devia, de modo muito mais saudável e sem quedas aparatosas, ter transitado para um regime democrático como aquele que alastrar agora na sua tão amada Nação.

Desempoeirava a mente, desopilava, descontraía, pulava nos comícios, dançava ao som dos bombos, não tinha de se preocupar com niquices caseiras - como descobrir mais um buraco na cave onde enfiar a oposição -, espairecia, ficava mais seguro da perenidade da sua obra e garantia o museu.

Não sei como foi capaz de perder a noção das vantagens de uma democracia portuguesa posta ao seu serviço, pese embora a sua tão certa preocupação com o acerto de contas e com as contas certas.

Não percebo como foi capaz de ignorar que se pode legalmente blindar os seus e os nossos privilégios, permitindo, ao mesmo tempo, que os pobres se manifestem numa gritaria desalmada de ruela impotente. Não é de todo necessária a polícia de choque! Basta andar às voltas de gabinete atarefado, com um je ne sais quoi preocupado, indignado, solidário e decidido a alterar a legislação na próxima legislatura. Depois se verá como se esquece, depois se verá como o povo se esquece.

Não faz sentido que não tenha dado conta que se podem vedar os tribunais aos cretinos que ousam - por dá cá aquele imposto ou roubalheira sem monta e sem montra -, exigir ver com olhos de ver aquela miragem tola com olhos vendados e balança nas patas que se vai entretendo com os nossos recursos usando os recursos do povo que, dada a quantidade e a qualidade, se esgotam depressa, não provocando quezílias de grande montante.

Não me compadeço com o facto de não ter compreendido que basta um há que clarificar tudo doa a quem doer e até ao fim, para que se esqueçam as ajudas de custo e desta forma não nos custe nada a reconstrução das casas de férias.

Não consigo aceitar que não tenha visto que é facílimo não pintar a coisa com lápis azul! Basta lançar mais nenúfares na água estagnada desta imprensa livre de forma a que se saltite de um lado para o outro, de lá para cá, de cá para lá, sem ressecar os números das audiências e sem sequer estar implícito o clarificar tudo doa a quem doer, porque tudo ficou bastante bem tratado e resolvido com o penso rápido colado com a saliva dos sentados nos estúdios dos comentários e nas fitas dos comendadores. O menino não fazia compras nos hipermercados, pois não? Se as tivesse feito, saberia que tantos rótulos juntos, distraem imenso e fazem esquecer que os iogurtes têm prazo. O povo, quando tudo se mistura, compra sempre o que está à mão, sem ler as cores e sem compostura.

Não me resigno com a sua indiferença perante o facto de bastar apagar - apagar, mas apenas informaticamente, não se precipite! -, uma quantidade substancial de pobres das listas de espera seja do que for que os trate, que enfuscam os hospitais, para que sopre ar puro e sem porcarias doentias nos gabinetes ministeriais permitindo descansar e acamar em metáforas o populacho que, quando nos transporta aos hospitais de iniciativa privada, não se consegue aturar, com queixas saloias de hemodiálises por fazer. Se os rins não funcionam que comam brioches que absorvem o vinho.

Não consigo entender como não foi mais assíduo nos constantes solavancos pedagógicos das Escolas, no abarrotar de burocracia digital ora tão moderna, tão em voga, que se não mata, embrutece, fomentando também desta forma arrevesada e atolada em linhas programáticas que vão bailando ao sabor dos lectivos burocratas, fornadas de pobres incapazes de pensar, ou então prolongando a magnífica diáspora portuguesa que sempre forneceu mundos ao mundo e ao mesmo tempo promovendo a alegria na velhice, na satisfação no trabalho na terceira idade, dos que incumbidos de educar os pobres, de lhes entregar novas oportunidades, cursos de formação de formadores, estágios profissionais não remunerados e contratos de emprego-inserção - baixam imenso o número de desempregados e fazem um brilharete na Europa! -, exalam alegria unindo o Portugal ao Brasil e ao Ultramar através da maravilhosa uniformização da língua de Camões - que finalmente já tem marcada a consulta de oftalmologia, no SNS que o homem nunca teve posses.

A glória da Nação Portuguesa no mundo passa, meu querido, por convencer com subtileza as pessoas cultíssimas a desandar daqui para fora, nunca a ir para fora cá dentro onde já não há, de todo, transportes que as levem. Há que provar no estrangeiro que continuamos a ter imenso valor e enorme capacidade de exportação. Nós fazemos. Nós exportamos. Uma economia em ascensão, e em assunção, tal como a Nossa Senhora que o Presidente da nossa e da sua República vai beijar, ajoelhado ao lado do novo Cardeal num 05 de Outubro de português laico e sem o glamour das saias vaticanas.

Não entendo, meu queridíssimo António, imensas outras coisas que ignorou sem atender ao quanto lhe seriam úteis, mas admito que vai longo este meu rabisco e não o quero maçar mais, sobretudo agora que, em nome do fascismo nunca mais, não o deixam ter museu.

Permita apenas que lamente mais uma vez que não tenha percebido o quão inúteis foram as esconsas e sombrias ruelas de opressão, de repressão, de tortura, de traição, de tráfico de influências, de extorsão, de censura, de morte, de exílio, de prisões e de tantas outras pequenas maldades que foi cometendo no escuro, quando para castrar um povo, torná-lo impotente, espoliado, incapaz, inculto, desdentado, roubado, sem esperança, miserável, subserviente, acomodado, iludido e sem justiça, bastava, mesmo em pleno dia, uma democracia entregue a canalhas.

16.10.21

A Gaffe culinária

Franco Noriega

A Gaffe não sabe cozinhar.

A Gaffe não sabe fotografar.

Torturando e tentado esmagar o dito até o transformar forçado num silogismo constrangido, poder-se-á concluir que a Gaffe não fotografa o que não cozinha.

No entanto, se soubesse preparar o prato mais simples que se possa imaginar sem transmutar a cozinha num cenário de um holocausto nuclear, se percebesse o mecanismo que permite colher uma representação aceitável do que lhe causa espanto, jamais se atreveria a captar uma imagem daquilo que produziu de avental e touca.   

Toda a rapariga esperta sabe que para fotografar um morango encimado por uma gota de chantilly - dá um lindo pai natal na mimosa mesa da consoada -, é imprescindível substituir o branco doce por espuma de barbear que não se desfaz com o calor das luzes que foram estudadas com minúcia para que o brilho do verniz com que o morango foi coberto obtenha o toque mágico duma eternidade gastronómica e primorosamente natalícia.     

A chamada fotografia culinária é uma arte difícil entregue a equipas de profissionais que cuidam da imagem da feijoada como cuidariam da que pertence à mais recente aquisição das passerelles.


Há no entanto meninas que sabem cozinhar, mas que não são grande garfo nas provas de contacto.

A Gaffe viu fotografias do work in progress e do produto culinário já finalizado.

A primeira contra a qual se acidentou, fê-la pensar que estava a ter uma premonição.

Sentiu-se mediúnica numa dimensão original, pois que vislumbrava o futuro. Perante esta rapariga atónica estava a fotografia de uma coisa que uma blogger de sucesso afirma ser culinária. Diante desta arrepiada criatura ruiva a imagem do conteúdo das fraldas do petiz com que a mamã continua a brindar a plateia, nunca desistindo de a mimosear com as traquinices do rebento e a abdicar do patrocínio.

Depois da perplexidade, veio a bonança. Era uma mousse de chocolate em forma de cocó de gente que come como se não houvesse amanhã - continuamos assim, neste apontamento temporal, a aludir a premonições.   

A segunda consistia num bolo de maçã, com recheio de manga e cobertura de caramelo.

A fotografia mostrava uma fatia de uma massa verdoenga e esfarelada por onde escorria uma substância viscosa e vagamente cor-de-laranja numa alusão nítida ao PSD.- e a Rui Rio. No cimo, uma fila indiana de lesmas muito bronzeadas parecia abrir caminho lento e penoso na rugosidade do destino que lhes entregou o sacrifício.


A Gaffe, passado o choque e já sob o efeito de uma sessão de psicanálise que a impede de associar cocós e lesmas a fotografias dos cozinhados das fadas do lar, resolve lavar a alma e os olhos por um diferente petisco da mamã, desta vez muitíssimo bem filmado e fotografado por quem sabe, acreditando que com ingredientes destes até ela seria capaz de cozinhar o prato e que seria difícil arrancá-la da cozinha. 



15.10.21

A Gaffe em recortes


A Gaffe tem deparado com um crescente uso de publicações onde pequenos mimos esbardalham frases de autores normalmente já falecidos e em consequência incapazes de protestar.

São coisinhas floreadas, com fundos idílicos ou rebuscados traços de designers de capoeira onde são usadas em letras tombadas e muito manuais pequenas tiradas, arrancadas dos contextos, que pululam de beleza interior.

Resumem tudo aquilo que os responsáveis por estas maldades sabem dos autores que vão ilustrando e ajustam-se - e confinam-se - a recortes do que parece adequado à ocasião pindérica e normalmente banal que tentam traduzir com elevados cogitares. Os grandes pensadores da humanidade dedicaram um tempinho e um cantito do cérebro às quezílias das comadres e percalços dos compadres, substituindo tudo o que estes usurários de triciclos emproados não são capazes de urdir ou pedalar, pelas palavras que foram por eles ditas na avalanche genial de páginas que foram por eles calcorreadas. Há sempre um pedacinho - um lancezito, um pedalzinho, um niquinho de caminho -, que pode ser aproveitado para desancar o parceiro que não fez um like nas fotos do aniversário do petiz, mostrando-se ao mesmo tempo que se é conhecedor e estudioso dos pobres pensadores.


Os autores mais citados, segundo um exaustivo estudo desta rapariga incansável, são Dali Lama, Oscar Wilde e Nietzsche.

O primeiro, porque é um fofo - embora mal vestido - e faz realçar as nossas vivências nobres, pacíficas, de grande beleza interior, a nossa tendência para a meditação, para o nosso profundo desejo de abdicar de terrenos anseios e pecaminosos desejos, a nossa capacidade profunda de olharmos o profundo capaz de elevação, solidariedade, de purificação e de glorificação da alma que já foi pedra e será, por ventura e encarnação futura, aquilo que usualmente parecem os que usam o senhor tibetano como arma de arremesso: um ratito que rouba a rolha da garrafa do rei da Prússia.   

Acompanhadas por imagens de velinhas ou de incenso, as tiradas são sempre uma bofetada de transcendência no nosso espírito vácuo, embora possuído por Maquiavel.  

O segundo, porque é absolutamente dandy  o uso da ironia e do spleen alheios.

É sempre adequada, seja em que circunstância for, a seta que se dispara com o arco do autor e nem sequer precisamos de usar a cartola da discriminação ou sentir ou conhecer a humilhação a que foi sujeita a coragem e a ousadia do maravilhoso amante de Bosie e o seu torpor niilista.

Não lendo Teleny, não é necessário entender o reverso da medalha. A ácida mordacidade e a capacidade destrutiva da ironia de Oscar Wilde, quando emolduradas por um friso de florinhas negras sobre fundo sépia, é perfeitamente capaz de ajudar a fustigar os outros que não agradam à nossa bonita maneira de ser.

Finalmente Nietzsche.

É assustadora a quantidade de gente que acredita ser a reencarnação de Lou Andreas-Salomé e que pode transformar um imponente bigode no veículo das suas alfinetadas bacocas e, no entanto, é simultaneamente compreensível - salvaguardando-se a distância que se exige, por demais evidente, e numa aproximação muito infeliz -, tendo em consideração o que os nazis fizeram ao seu pensamento, adequando-o e manipulando-o de modo a que fosse passível de usar como esteio da hecatombe. Nietzsche é muito dado a estas perdições.

O uso de pedacinhos soltos de Nietzsche, em letras brancas garrafais sobre rectângulos negros com a sua esfinge apensa, é apenas o reconhecer da dimensão do desconhecimento da brutalidade imensa da força filosófica do pensador e é um dos motivos para se sentir vergonha alheia.  

 

A Gaffe, depois de se esbardalhar contra tantos recortes de mimoso corte destes três potentados, acaba por humildemente colar num quadradinho com lacinhos e fitinhas cor-de-rosa, sustentadas por ursinhos de peluche, a frase lapidar da Filosofia Primordial, com raízes no Húmus Primário, na Origem e nos ramos transversais a todo o pensamento humano:

 

Ide todos bardamerda.


14.10.21

A Gaffe num círculo


Às vezes, apercebo-me que dentro dos seus olhos azulados existe um espeto. Um prego de saudade de algures, ou de alguém que não nomeia. Às vezes, encontro-lhe no silêncio que desenha com o dedo na superfície dos móveis, a brandura e a ausência de gente dentro do peito. Às vezes, descubro-lhe no cabelo de trigo limpo a trança destroçada da tristeza meiga que sem voz aprende a deslizar pelo chão como um cachorrinho amedrontado. Às vezes vislumbro-lhe o brilho desmesurado, solto daquele orgulho adolescente capaz de trucidar os frágeis, os pequenos, pequeninos. Às vezes, apercebo-me daquela melancolia não sei de onde vem, ou para onde vai.

Às vezes, faz lembrar hortênsias.


A minha sobrinha chegou há alguns anos para passar as férias do Natal no Douro. Ficou, renovando o ciclo. Antes dela, eu; antes de mim, a minha mãe; antes da minha mãe, a minha avó; antes da minha avó, o passado que é eterno e o passado antes deste, que assim é construída a casa de que sou reflexo.

 Sei que fiquei à espera, como ficaram à minha espera no passado.

Foi a minha vez de ensinar a perscrutar a terra, a tocar o caule das hortênsias, a aflorar a água do lago, a deixar que as carpas brinquem com os dedos que ao de leve tocam nas escamas das asas do anjo de pedra debruçada; de lhe ensinar a ouvir o virar das páginas das árvores; de lhe ensinar a podar as sardinheiras – em bisel, meu amor, e sempre rente ao chão, que o chão as reconhece; de a fazer repousar nas almofadas das romãs e das maçãs abertas; de permitir que acaricie com a lentidão das patas dos insectos as black lace ainda em embrião; de a fazer entrar em casa como quem entra num corpo; de lhe contar dos avós, do bisavô, da bisavó e de mansinho tentar que a minha comoção se torne nevoeiro na cisterna.

Foi a minha vez de lhe dizer que uma japoneira morre se ousarmos o transplante. É como viver dentro de um coração. Para de bater, se o desocupamos. Era urgente que soubesse que não se podem deslocar as árvores das camélias.


Depois, e só depois, deixei que lhe ensinassem como exigir que as jarras as recolham mortas.


13.10.21

A Gaffe mal acorda


É usual ouvir amaldiçoar as Segundas-feiras. Há canções que dedicam acordes e palavras a castigar o primeiro dia da semana.

Confesso que nunca percebi a razão deste ódio ruidoso. Nunca senti a nostalgia a invadir-me no anoitecer de um Domingo, nunca me senti invadida pela depressão que por norma chega apensa a uma despedida dolorosa e nunca adormeci, na véspera de um início, revoltada com a quebra da tranquilidade e do laissez faire laissez passer dos dias de descanso.

Acordo sempre intragável, seja em que dia for.

Sou solidária com criaturas que cegam com a luz matinal. Apoio o não movimento. Dou a mão aos sonolentos caracóis que se arrastam até ao suicídio que é abrir as janelas e deixar o mundo entrar.

Sempre gostei e sempre acreditei nas pessoas que se parecem comigo.

Não é de todo necessário que sejam minhas sósias. Não é preciso que as situações caiam no exagero, pois é bizarro encontrar a Teresa Salgueiro na voz da Susana Travassos, mas é reconfortante perceber que não estamos sós neste planeta muito pouco azul por onde voam as cegonhas.

Posto isto - e sublinhando o facto de não ser premente que haja gente com particularidades iguais às minhas -, devo confessar que fiquei abismada, siderada, chocada, arrepiada e todos os superlativos que se consigam encontrar, quando, hoje de manhã, abro o pequeno aparelho que me coloca em contacto com o universo e dou de caras com uma criatura que traz o meu cabelo, caracol por caracol, curvinha por curvinha, corzinha por corzinha, colado à cabeça, tudo juntinho e com o mesmíssimo corte!

Um plágio.

Fiquei em estado comatoso quando reparo que é um homem!

Antes a Jessica Rabbit.

Não se faz!



Provocou-me o mesmo efeito que o erguer das persianas.


12.10.21

A Gaffe dos silêncios


A tarde disposta ao silêncio espalhada no chão.

O meu corpo na penumbra, de vigia. Os meus olhos na sombra, os meus sentidos no escuro.

Escondida na obscuridade de um murmúrio, há na minha boca o sabor da transgressão. Um sabor rugoso de madeira ressequida. Tenho o direito de tentar compreender a minha ausência nos universos velhos femininos desta casa. Quero saber do ritual benéfico e do feitiço maldito, da prática secreta, da velha e encoberta fórmula de encantar.

Nesta tarde que se deita sobre a cama. Tarde de menina morta de olhos fechados, de caracóis pousados na almofada e colar de pérolas tombado, vestido azul escuro, enfolado, com pequenas flores, raminhos bordados.

Um fio de voz imperceptível, o fio de uma aranha, um fio de navalha. O fio ténue e fino e perdido da voz da tarde a desfiar as feridas, a traçar os mapas e as marcas da dor, a descrever as mágoas. No corpo da tarde pousam as palavras, os dedos e os medos sussurrados das mulheres. Em cada palavra que não quer ser dita tudo parece consumado e o silêncio é maior que o resto.

O entardecer é colocado no lugar habitual empurrado com um gesto dócil.

É o momento dos desertos em que a solidão ondula e a dor prevalece como um cardo.

A casa inteira anoitece devagar.

No Douro há sempre tempo para tudo e dentro deste tempo compreendo o ritual diário destas mulheres, aquela quase dança de ternura e de deslumbre, aquele quase crime, aquela quase entrega de desmesurado amor. São estas mulheres que trazem encarcerado o corpo da casa. Ficam à espera que o silêncio chegue, ainda que fugaz, e nos conte, contando no corpo da casa, das marcas sofridas nos corpos de carne.

Depois de novo o silêncio.

As mulheres do Douro são silêncios.

Aqui é bom o silêncio. É bom estar calado. É bom não dizer. É bom não ter corpo. É bom não pensar.

É bom ser só a casa.

Porque esta casa foi adquirindo uma entidade própria e uma determinação indómita. Foi, enquanto o tempo envelhecia, sobrepondo o desejo das pedras à vontade do dono de modo que se deixou de perceber quem domina quem. Como no poema, o senhor tornou-se servo, por amor.

Esta casa vai construindo as ordens, vai solidificando o poder da pedra sobre a carne, vai erguendo o seu esmagador domínio sobre quem a deixou de ter, porque ela o tem. Decide quem entra, escolhe quem será expulso e responde agressiva àqueles que sem o seu consentimento se atrevem a passar. Não passam se forem ameaça. Não passam se lhe causarem ciúmes. Não são acolhidos se arriscam o amor daqueles que são dela. Não permite a invasão da mais ínfima partícula de almas estranhas. Impede a luminosidade dos pássaros e a cumplicidade dos amantes.

Esta casa contém o interdito e cuida dos fantasmas.

É a ela a que chego agora. É dentro dela que retorno a mim, que me sinto dentro, por dentro. É dentro dela que fico em mim, a sentir o partir dos outros, dos que ficam a latejar nas pedras presas nas solidões que tombam como gotas grossas das águas das árvores depois de chover, em silêncio.  

É nesta casa que me recolho em mim e que reaprendo os pequenos passos, os mais breves gestos. Pormenores.

É nesta casa que toco nas pequenas, pequenas, pequenas, coisas. Nas toalhas de linho com monogramas bordados. No perfume de hortelã dos aventais da Jacinta agora morta. Na jarra de porcelana com peixes no dorso. Na cigarreira de prata sobre a escrivaninha. No papel de carta opalino pousado perto da imagem de marfim de um deus antigo. No constrangido marcador do livro que ninguém acaba. Nas folhas secas de tília mal florida que esperam por tisanas de abandono e de anoitecer. Na abóbada das mãos erguidas da imagem da Virgem do Amparo secular - que o seu santo manto nos cubra e nos proteja, hoje e para todo o sempre. Na tristeza que entardece este silêncio de gato enroscado no chão quente das cozinhas. No peso dos cortinados que se fecham sobre a luz cinzenta das copas de chuva dos candeeiros de mesa. Nos murmúrios das madeiras nocturnas e sozinhas.


É nesta casa que me deito dentro da sombra onde isolo a minha vida, no toque das pequenas coisas descobertas e neste poder da pedra sobre mim, sobre uma Primavera desgrenhada que emerge espantada e por iluminar.

É nesta casa que afloro as mais pequenas coisas esquecidas e é dentro delas que pressinto a urgência da memória para nos salvar a vida.  


A Gaffe do Chef

G. Haderer

É extraordinária a facilidade com que se abrem as ostras cor-de-rosa das notícias e se encontram pérolas de plástico quando nos dedicamos a saltitar pelos ditos e reditos dos nossos mais talentosos representantes.

A Gaffe encontrou o chef Avillez triste, choroso, mas sem deixar de revelar uma indignação muito sensata, a lamentar não conseguir estagiários dedicados a seguir as estrelas das suas manjedouras groumet, porque as escolas de onde partem não os deixam trabalhar mais do que oito horas diárias.

O menino trabalha, mas apresenta a conta, não conta.

Parvas.

A Gaffe não entende muito bem a necessidade de se trabalhar com extensões ilegais nos pratos que Avillez serve aos clientes - ou convidados, pois que gente de bem não tem preço -, porque se torna claro que um tachito médio de arroz sustenta as refeições de um mês dos entusiastas, tendo em conta os grãos que na porcelana se depositam, logo ali ao lado do traço de anchova e pitade de manjericão confitado e azeitona em óleo de carabitaté-tuparaté au feu.  

A verdade é que a Gaffe é rude e bronca. Prefere uma refeição que leva mais tempo a comer do que a nomear. Quem lhe tira um alguidar duriense de cozido à portuguesa, servido depois à doida num prato de barro com uma quadra ranhosa no fundo, decepa-lhe parte da vida. Não está, em consequência, qualificada para rabujar em relação à cozinha de Avillez, assim como não pode opinar acerca da cozinha molecular, pois que cuspiu - grosseira! - o ovo escalfado que levou duas horas a preparar. Não o chegou a engolir, porque sentiu que estava a pousar na língua uma lesma com uma overdose. Sem o saber e o sabor de experiência feitos, não se devem regurgitar postas de pescada.

Sente, contudo, que deve estar ao lado de Avillez nesta sua frustrante demanda.

É inadmissível que estejamos dispostos a pagar a estagiários ordinários, a aprendizes imbecis de feiticeiro, parte de um ordenado, contando que os Centros de Empregos paguem o restante, e sermos confrontados com estes minorcas e quem os tutela a recusar infringir a Lei, apenas por pirraça. É evidente que passados alguns meses, estes nojentos exigentes são substituídos por outros.

Há que baixar os olhos para as antigas senhoras lá de casa, gente dedicada e fiel, agradecida, capaz de se depenar e de despir a camisola - e em casos de necessidade o resto -, quando, anos a fio, tocávamos a campainha de serviço.

Pobre e inocente Avillez que ainda não percebeu que já se vai tornando difícil encontrar sopeiras como no antigamente das estrelas.


11.10.21

A Gaffe genética


A Gaffe afirma que ser ruiva é quase tão doloroso como conviver com o penteado de Donald Trump e lembra às feministas que uma cabeleira da cor do fogo é tão limitadora como qualquer soutien digno de fogueira, e não compensa saber que Roma Antiga comercializava por mais altos preços, dada a raridade, os escravos ruivos, pois que os velhos egípcios ateavam fogo às cabeleiras ruivas para lhes destruir a cor.

Para alguns, em tempos que não se apagaram de todo, ser-se ruivo seria padecer de uma mutação genética. Talvez seja por isso que as abelhas picam mais estas criaturas. Os insectos são muitas vezes aliados a tolices humanas e, por sua vez, todas as tolices humanas nos vão transformando em rastos de insectos. 

Entre inúmeros percalços, a Gaffe escolhe aqueles que tem sofrido estoicamente e prontifica-se a acolher nos seus braços solidários a barba ruiva de três dias de Michael Fassbender.

 

Anotemos alguns pontos:

- Há sempre gente que sente necessidade de nos avisar que estamos em extinção;

- Há sempre alguém que comenta a cor do nosso cabelo, seja onde for, estejamos onde quer que seja;

- Há sempre um estranho que nos aconselha o melhor protector solar que conhece;

- Há sempre alguém que diz:  – Olha! A tua futura prole! – quando por nós passa uma criança ruiva;

- Há sempre alguém que nos pergunta se a cor do nosso cabelo é natural, mesmo que isso seja tão óbvio que até doa;

- Há sempre alguém que nos tenta impingir um outro ruivo;

- Há sempre alguém que nos tenta convencer que o nosso cabelo não é vermelho, é alaranjado;

- Há sempre alguém que num dia de frio tenta ser engraçado e finge aquecer as mãos no nosso cabelo;

- Há sempre alguém que nos pergunta se somos parentes de um outro ruivo que passa;

- Quando coramos, perguntam-nos se nos estamos a sentir bem e tentam medir-nos a febre;

- Quando sentimos que não vamos longe, porque a cor do nosso cabelo nos prende;

- Somos marcadas no facebook em fotografias onde existem objectos avermelhados ou cenouras e laranjas;

- Somos, mais tarde ou mais cedo, as ruivas honorárias de qualquer sociedade ou filarmónica;

- Deixamos de acreditar que haja alguém a desejar ter um filho ruivo;

- Identificamo-nos mais depressa com personagem ruivas da BD, mesmo as mais horríveis, e de imediato com todas as personagens ruivas no cinema;

- Provamos que somos ruivas verdadeiras quando apanhamos um escaldão dois minutos depois de termos chegado à praia, enquanto os outros estendem as toalhas;

- Apanhamos um escaldão no Outono, mesmo à sombra;

- Ficamos demasiado alegres quando nos cruzamos com um rapagão ruivo lindo de morrer;

- Respondemos sempre que alguém grita RUIVA! Reagimos sempre, porque pensamos que nos estão a chamar;

- Não somos bem, bem ruivas, porque um dos nossos amigos acha que o nosso cabelo é mais cor de ferrugem;

- Agarram-nos por um braço e aproximam o rosto do nosso para que se veja como é branca a nossa pele;

- O número de pessoas que nos identifica por a ruiva, cresce à medida que crescemos;

- Chega sempre o momento em que os velhotes nos acariciam o cabelo com ar de pena;

- Quando o nosso blog tem referências, ainda que gráficas, aos ruivos;

- Descobrimos surpreendidas que ruiva também pode ser dito com uma ternura imensa e que nessa altura não somos nós as criaturas em vias de extinção. O resto do universo já desapareceu. Apenas fica a voz de quem nos chama. Talvez seja por isso que, se fosse permitido escolher o tom da nossa pele, a cor do cabelo ou a quantidade de sardas que nos povoam o corpo, a Gaffe não hesitaria em permanecer tal como é. 


Há vozes com um timbre que nos faz sentir que somos raras, mesmo quando a banalidade também é ruiva.